O Segredo das Águas
Outro excelente filme se fez presente na 38ª. Mostra de
Cinema de São Paulo, o drama existencialista O Segredo das Águas, com direção e roteiro de Naomi Kawase, que
venceu o Câmera de Ouro para estreantes em Cannes com o longa Suzaku (1997), foi indicada quatro vezes
ao Palma de Ouro, mas levou o Prêmio da Crítica em 2007 com Floresta dos Lamentos. Este seu último
longa tem toques autobiográficos da cineasta japonesa que foi criada pela avó,
porém após a morte dela é sua primeira filmagem, baseada na descoberta de que a
bisavó era uma nativa xamamista, uma pessoa chamada para suas tarefas
espirituais reconhecidas pelos vizinhos da comunidade.
A religião está muito próxima e faz o elo de ligação entre
vivos e mortos, pelo olhar de Naomi, que difunde nesta notável obra o
aprendizado sobre o além, nesta trama centrada na costa marítima ao sul do
Japão, na Ilha de Amami-Oshima, onde as tradições que envolvem a natureza são milenares.
A degola de um cabrito na cena inicial, que será repetida com detalhes
doloridos e aterrorizantes no meio do longa, é para explicar a subida para o
infinito da alma que se desprende da matéria. Durante uma noite de danças
tradicionais em agosto, Kaito (Nijiro Murakami), um garoto de 16 anos, descobre
um cadáver flutuando no mar. A pretensa namorada dele, Kyoko (Jun Yoshinaga),
vai tentar ajudá-lo a compreender essa misteriosa morte, que terá desdobramento
pela doença terminal da mãe da menina (Miyuki Matsuda), embora ainda de
meia-idade está prestes para partir e deixar seus ensinamentos e poderes
mediúnicos sobre a eternidade e a transcendência pós-morte do corpo para a
energia em forma de espírito que se manterá vivo, explicado pelo pai da jovem
(Tetta Sugimoto).
Há uma grande dificuldade em Kaito tornar-se adulto e
libertar-se da mãe, para experimentar as sutis relações entre vida, morte e
amor. Chega a ter, inclusive, sua sexualidade posta em xeque de forma discreta
pelo futuro sogro, diante da recusa contumaz em assumir o namoro de vez com
Kyoko. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis
diferentes num universo voltado para a reflexão. Mas a paradisíaca ilha tem
seus mistérios e a fúria incontrolável da natureza, como o vento uivando vindo
do mar como tempestade devastadora para pulsar as frondosas e centenárias
árvores. São fatores climáticos externos que vêm corroborar ainda mais com as
lendas e divagações religiosas amplamente difundidas, com teses e sugestões
definitivas sobre o tema.
O cenário bucólico, mas paradoxalmente assustador, traz a
violência que aflora entre as árvores e o silêncio do mar naquele lugar
aprazível aparentemente. É deslumbrante nas imagens captadas pela fotografia de
Yutaka Yamazaki, como elementos necessários e exponenciais para a solidificação
do fascinante roteiro e seus intrincados desdobramentos, num clímax de tensão,
ternura e afeto que se misturam com a raiva do garoto e sua obsessão pela
integridade física dos pais, especialmente da mãe já separada e do pai que vive
novo relacionamento em Tóquio. Ela é vista pelo olhar do filho como uma mulher
casta e inatingível, contrariando a analogia do pai de Kyoko, ao explicar a
natureza e sua força incontida, como alegoria dos desejos e instintos
irrefreáveis daquela mulher, conduz de maneira adulta para libertar da obsessão
que faz Kaito refém e prisioneiro do sexo, prejudicando sua própria atividade e
interesse pela libido latente da adolescência em ebulição.
O drama não dispensa o depoimento do velho pescador visionário
que afirma ter visto na garota a própria imagem de sua bisavó saindo mar. O
surfista morto terá uma revelação no desabafo do menino, assim como haverá
teorias sobre o surfe e a última onda do mar como sendo de igualdade, para
estarem juntos na mesma plenitude, como filosofa alguém entendido na área. O Segredo das Águas reflete sobre a
vida e seus prazeres sem dissociar os sentidos da existência com a morte depois
da vida e o caminho da eternidade recheada de mistérios do além. Filosofia e
razão estão acima dos instintos de perpetuação de espécie, mas são usadas como
forma de cativar pelo lado religioso, acreditando ou não, eis um filme magnífico
e altamente interessante como contribuição singular para aquecer almas e
pessoas frias e distantes, como uma função edificante do cinema.
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