quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Segredo das Águas)


O Segredo das Águas

Outro excelente filme se fez presente na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o drama existencialista O Segredo das Águas, com direção e roteiro de Naomi Kawase, que venceu o Câmera de Ouro para estreantes em Cannes com o longa Suzaku (1997), foi indicada quatro vezes ao Palma de Ouro, mas levou o Prêmio da Crítica em 2007 com Floresta dos Lamentos. Este seu último longa tem toques autobiográficos da cineasta japonesa que foi criada pela avó, porém após a morte dela é sua primeira filmagem, baseada na descoberta de que a bisavó era uma nativa xamamista, uma pessoa chamada para suas tarefas espirituais reconhecidas pelos vizinhos da comunidade.

A religião está muito próxima e faz o elo de ligação entre vivos e mortos, pelo olhar de Naomi, que difunde nesta notável obra o aprendizado sobre o além, nesta trama centrada na costa marítima ao sul do Japão, na Ilha de Amami-Oshima, onde as tradições que envolvem a natureza são milenares. A degola de um cabrito na cena inicial, que será repetida com detalhes doloridos e aterrorizantes no meio do longa, é para explicar a subida para o infinito da alma que se desprende da matéria. Durante uma noite de danças tradicionais em agosto, Kaito (Nijiro Murakami), um garoto de 16 anos, descobre um cadáver flutuando no mar. A pretensa namorada dele, Kyoko (Jun Yoshinaga), vai tentar ajudá-lo a compreender essa misteriosa morte, que terá desdobramento pela doença terminal da mãe da menina (Miyuki Matsuda), embora ainda de meia-idade está prestes para partir e deixar seus ensinamentos e poderes mediúnicos sobre a eternidade e a transcendência pós-morte do corpo para a energia em forma de espírito que se manterá vivo, explicado pelo pai da jovem (Tetta Sugimoto).

Há uma grande dificuldade em Kaito tornar-se adulto e libertar-se da mãe, para experimentar as sutis relações entre vida, morte e amor. Chega a ter, inclusive, sua sexualidade posta em xeque de forma discreta pelo futuro sogro, diante da recusa contumaz em assumir o namoro de vez com Kyoko. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis diferentes num universo voltado para a reflexão. Mas a paradisíaca ilha tem seus mistérios e a fúria incontrolável da natureza, como o vento uivando vindo do mar como tempestade devastadora para pulsar as frondosas e centenárias árvores. São fatores climáticos externos que vêm corroborar ainda mais com as lendas e divagações religiosas amplamente difundidas, com teses e sugestões definitivas sobre o tema.

O cenário bucólico, mas paradoxalmente assustador, traz a violência que aflora entre as árvores e o silêncio do mar naquele lugar aprazível aparentemente. É deslumbrante nas imagens captadas pela fotografia de Yutaka Yamazaki, como elementos necessários e exponenciais para a solidificação do fascinante roteiro e seus intrincados desdobramentos, num clímax de tensão, ternura e afeto que se misturam com a raiva do garoto e sua obsessão pela integridade física dos pais, especialmente da mãe já separada e do pai que vive novo relacionamento em Tóquio. Ela é vista pelo olhar do filho como uma mulher casta e inatingível, contrariando a analogia do pai de Kyoko, ao explicar a natureza e sua força incontida, como alegoria dos desejos e instintos irrefreáveis daquela mulher, conduz de maneira adulta para libertar da obsessão que faz Kaito refém e prisioneiro do sexo, prejudicando sua própria atividade e interesse pela libido latente da adolescência em ebulição.

O drama não dispensa o depoimento do velho pescador visionário que afirma ter visto na garota a própria imagem de sua bisavó saindo mar. O surfista morto terá uma revelação no desabafo do menino, assim como haverá teorias sobre o surfe e a última onda do mar como sendo de igualdade, para estarem juntos na mesma plenitude, como filosofa alguém entendido na área. O Segredo das Águas reflete sobre a vida e seus prazeres sem dissociar os sentidos da existência com a morte depois da vida e o caminho da eternidade recheada de mistérios do além. Filosofia e razão estão acima dos instintos de perpetuação de espécie, mas são usadas como forma de cativar pelo lado religioso, acreditando ou não, eis um filme magnífico e altamente interessante como contribuição singular para aquecer almas e pessoas frias e distantes, como uma função edificante do cinema.

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