Surge o melhor filme até agora da 38ª. Mostra de Cinema de
São Paulo, o monumental drama Winter
Sleep faz uma reflexão magnífica sobre a existência e seu sentido na
essência da vida, com a direção do brilhante e já consagrado turco Nuri
Bilge Ceylan, que também assina o roteiro com Ebru Ceylan. Um filme de 196
minutos pode assustar no primeiro momento, mas surpreendentemente flui e anda
como se fosse um média-metragem. Venceu o Palma de Ouro e o Prêmio da Crítica
do Festival de Cannes deste ano. O cineasta realizou ainda Distante (2002), vencedor como melhor ator e Grande Prêmio do Júri
de Cannes daquele ano. Com Climas
(2006) levou o Prêmio da Crítica da 30ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Melhor
diretor em Cannes pelo festejado Três
Macacos (2008) e com Era Uma na
Anatólia (2011) abocanhou novamente o Grande Prêmio do Júri em Cannes e
Prêmio da Crítica da 35ª. Mostra de São Paulo.
Ceylan arrasou no estupendo Era Uma na Anatólia, uma mescla de filme policial noir com drama social numa aparente e
singela investigação policial de um crime, durante uma noite inteira com o
desfecho no outro dia, em que nada funciona, a começar pelos carros corroídos
pelo tempo e completamente arcaicos. Solidificou-se como um diretor preocupado
com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia está
presente e marcante no caos que se instala nas improvisações que vão desde a
polícia até a medicina, passando por um judiciário ultrapassado e inócuo para
resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe
rodeada de colinas. Para muitos o melhor de todos, mas com seu último longa já haverá
controversa, diante do mergulho reflexivo do existencialismo.
A trama é complexa e repleta de filosofia sobre a vida e
ensinamentos que se aprendem no dia a dia. Há um mergulho estupendo no âmago para
criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, não
importa. Mas todos com alma e coração sangrando. Aydin (Haluk Bilginer-
interpretação antológica pela desenvoltura e convencimento), é um ator turco
aposentado que comanda um hotel na região da Anatólia central, tem fama de dominador,
é chamado de senhorio pelos inquilinos, bate de frente com Hidayet (Ayberk
Pekan), o pai do garoto que apedreja seu carro na estrada. Mantém uma relação
fria e distante com a mulher Nihal (Melisa Sözen- de beleza estonteante que
gravita com seus olhos graúdos, tem atuação impecável e lembra a atriz argentina
Martina Gusman), de quem ele se afastou emocionalmente, levam um casamento de
aparências, mas nutre um ciúme forte por ela, principalmente pelo professor
Ismail (Nejat Isler). Tenta controlá-la e mantê-la afastada de seu trabalho
comunitário, o que irá gerar mais desavenças e crise no casal.
O protagonista vive às turras com a irmã Necla (Demet Akbag),
que ainda sofre com seu divórcio recente. O inverno fará com que Aydin simule
partir dali para Istambul, mas irá mesmo beber vinho e filosofar com o vizinho
Suavi (Tamer Levent), um amigo de uma fazenda próxima. A noite é memorável e
surpresas o aguardarão, inclusive o vômito como depuração e limpeza de um homem
beirando a irracionalidade, em forma de alegoria como transposição à
civilização.
Temas como a solidão, doença e velhice foram exploradas com
méritos inegáveis pelo genial Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957);
ou ainda em Viver (1952), de Akira
Kurosawa; ou em Amor (2012), de
Michael Haneke, este com um naturalismo exposto como vísceras da decadência
humana intensa. Ceylan traz para a abordagem os mesmos temas, aprofunda-se nos
diálogos doloridos com questionamentos implacáveis, pela sua maneira elegante com
um toque de classe seco e direto, através do extremo realismo de cenas com som
direto em longos planos sequenciais, ao melhor estilo do formalismo com rigor
do mestre longevo português Manoel de Oliveira. Tem na forma alguma crueza
direta e em nada comparável com a estética criativa e metafórica dos mestres
inspiradores. O drama invoca uma facilidade na técnica para prender o
espectador, retratando o cotidiano que dilacera num contexto de grande cinismo,
vingança e domínio do poder sobre os menos favorecidos, derivando para o
desemprego e a humilhação exacerbada, como na cena do garoto levado para beijar
a mão do todo poderoso.
Winter Sleep retrata os efeitos do tédio e ressentimento de
um homem em crise e com a sensação de perda da parceira, acompanhado da solidão
e da velhice que aflora de forma iminente, num cenário instigante de nevasca
por todos os lados, do cavalo selvagem capturado e símbolo da liberdade no
epílogo metafórico. O filme fascina pelo movimento interessante de uma câmera
em planos-sequência longos, às vezes em contraplanos mais curtos, captando as doloridas
imagens de um neo-realismo de grandes filmes do cinema como Arca Russa (2002) em plano-sequência
único e a famosa trilogia impactante de também realismo cênico em Moloch (1999), Taurus (2001) e O Sol (2005),
todos de Alexander Sokurov. No melhor estilo do velho Cinemascope, no processo
de filmagem baseado em lentes especiais que na projeção produz grandes
dimensões, além de transmitir sensação de relevo, toma conta da tela. Um drama
perturbador e reflexivo sobre a alma invadida, retirando os véus da lucidez
perdida, partindo para o encontro com a vida e as emoções existenciais sobre o
incômodo e progressivo fim que espera a humanidade. Um acerto estético
elogiável e fabuloso para um desenrolar com raras elipses.
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