sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Reino da Beleza)



O Reino da Beleza

Outro aguardado filme que não decepcionou na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi o drama O Reino da Beleza, com direção e roteiro do consagrado canadense Denys Arcand, que venceu o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes com O Declínio do Império Americano (1986). Dando continuação filmou As Invasões Bárbaras (2002) que abocanhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Participou com estas duas obras-primas na Mostra de São Paulo, para retornar na edição 31 com A Era da Inocência (2007). Agora neste último longa retrata uma grande paixão de um homem casado que conhece por acaso uma mulher linda, intrigante e sedutora como um combustível que faltava para explodir uma grande paixão, que revira sua vida e o abala psicologicamente, uma espécie de atração fatal.

Arcand é um cineasta preocupado basicamente com as mazelas sociais, entre as quais as más condições hospitalares, além das relações humanas familiares, como vista na temática de As Invasões Bárbaras que se dá em torno de um historiador em fase terminal de um câncer, no qual o filho tenta proporcionar ao pai um final de vida melhor, com menos sofrimento. Durante o filme se explicita o conflito entre os dois que há tempos não se viam e que, em razão das circunstâncias, são obrigados a se reencontrar. À beira da morte e com dificuldades em aceitar seu passado, busca encontrar a paz no pós-morte com a ajuda contraditória do filho ausente, sua ex-mulher e velhos amigos.

Mesmo sendo uma realização menor em sua filmografia repleta de obras magníficas, o filme atual está bem acima da maioria das mediocridades que são despejadas no mercado cinematográfico. Tem uma trama gostosa e densa ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça. Luc (Éric Bruneau) é um jovem arquiteto talentoso, que tem uma vida aparentemente tranquila com a esposa, Stéphanie (Mélanie Thierry), em um lugar paradisíaco nas imediações da aprazível Québec. O casal tem uma casa moderna, são atléticos e praticam vários esportes como tênis, caça e golfe, participam de jantares com os seletos amigos de sua roda social, levam uma rotina agradável como poucos. Num dia qualquer ele aceita ser o membro de um júri de arquitetura em Toronto. Lá, encontra Lindsay (Melanie Merkosky), a bela e misteriosa organizadora de eventos em Toronto, que fisga o coração e a alma do marido fiel, até ali.

O novo filme de Arcand é bem coadjuvado pela deliciosa trilha sonora de Pierre-Philippe Cote e com a primorosa fotografia de Nathalie Moliavko-Visotzky, captando imagens em lindas locações, como os lagos, campos, rios com embarcações suntuosas, estações de esqui sendo bafejadas por nevascas, tudo com belezas naturais de um Canadá festejado. Com uma narrativa pontuada pelo drama pouco denso familiar, após os acontecimentos do evento e as descobertas do protagonista, de que sua vida nunca mais será a mesma, o filme dá uma oscilada no meio pela frieza nórdica, faz perder um pouco o ritmo, para retomar o clímax e acelerar na reta final, com um pouco mais de emoção pela dor da possível perda se confrontando com o sentimento de culpa pela traição, seguido da tentativa de suicídio.

O drama traz no seu bojo as nuances de um romantismo desbragado, com boa dose de lirismo e sutilezas, mesmo que em situações indesejadas juntas de um egoísmo, sem grandes reviravoltas e de pouco argumento reflexivo quanto ao casamento na sua essência e os relacionamentos extraconjugais do casal, especialmente do marido que valoriza a beleza plástica na sua profissão, incluindo-se mulheres e casas bem definidas como valoração de coisas supérfluas. A trama no desfecho revela como uma ode ao Don Juan na nova conquista amorosa e a criação material quase que num mesmo plano. As crises da mulher bissexual no aspecto de depressão e transtornos de pânico avançam lentamente, embora haja delírios e fantasias pouco consistentes, ficam pelo meio do caminho nas perturbações psiquiátricas incapacitantes que afetam diretamente a relação conjugal, mas caracterizadas sem muito elã.

O Reino da Beleza pode não ter um roteiro de grande complexidade, mas faz pensar sobre as futilidades impostas sobre a beleza como objetivo de discórdia e a transmutação da vida aparentemente feliz de um casal, teoricamente, é claro. O epílogo em Paris é antecipado pelo prólogo no reencontro dos velhos e apaixonados amantes. O fim do casamento não chega a ser questionado com profundidade, deixando interpretações evasivas sobre o marido que se esconde para aparentar uma relação normal, mesmo levando sua vida pela metade até certo ponto, como a corrosiva cena em que abandona a amante no luxuoso hotel e vai se refugiar num quarto de motel modesto, diante do velho e surrado sentimento de culpa.

O diretor deixa para o final para uma tentativa de realizar um bom ensaio sobre as novas conquistas, sem que haja o rompimento do vínculo matrimonial, permanecendo o amor acima de tudo. Não há muita poesia, mas tem boa dose de cenas apimentadas de prazer nas cenas tórridas de sexo explícito. Traição e culpa são abordados com alguma desenvoltura, embora com distanciamento, como decorrências de um casal que mora junto, diante do inesperado choque do surgimento de outras pessoas envolvidas no seu cotidiano, de lado a lado. Há um bom realismo na intimidade com o espectador nas cenas de tristeza da perda iminente de um grande amor e a solidão que se escancara como resultado final, mas no seu contexto há muito mais do que sexo livre, afasta os preconceitos repressivos na abordagem, mesmo que desemboque em rupturas do cinismo.

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