quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Rosas a Crédito)
















Rosas a Crédito

A reconstrução da França pós-2ª. Guerra Mundial pelos olhos atentos de Amos Gitai é o mote para o tema principal de um conturbado relacionamento de um casal de jovens recém-casados em Paris. Depois de Free Zone (2005), o diretor israelense paralisou sua criatividade e estacou com temas repetitivos como brigas de fronteira entre palestinos e judeus, cansando os olhos e ouvidos de seus admiradores, não inovando sua filmografia prodigiosa.

Finalmente, Gitai dá um salto de qualidade vertical, ao abordar de forma profunda e serena, com uma sutileza encontrada somente entre os grandes cineastas ao filmar Rosas a Crédito, baseado num romance de um livro de Elsa Triolet, magnífico drama intimista sobre Daniel (Grégoire Leprince-Ringuet) que casa com Marjoline (Léa Seydoux- unindo beleza e talento no desempenho admirável de seu papel, com futuro promissor), criam um painel para as discussões e reflexões de pessoas diferentes nos usos, costumes e intelectualmente diferentes. O casamento de Daniel e Marjoline acontece em meio a discursos ufanistas e patrióticos das Forças de Resistência da França, logo após o final da 2ª. Guerra Mundial, exaltando a expulsão dos alemães, repetindo os brados de vitória, numa tentativa de contagiar o povo francês, que está distante e decepcionado com este mundo de guerras e banalidades.

Daniel é um jovem sonhador que adora rosas e faz experiências para modificá-las geneticamente, visando manter a tradição da família no seu cultivo, com o apoio próximo de seu pai, quer continuar morando no interior reformar a velha casa do avô, fruto da herança familiar de um patrimônio que considera indispensável. Porém, Marjoline é uma moça que gosta do novo e odeia o antigo, o velho, o atraso, a solidão interiorana da fazenda, não gosta de ler, pouco ouve rádio. Seu interesse é por comprar compulsivamente, como revistas de moda e decorações de casa. Vai comprando tudo que vê pela frente, inclusive o apartamento minúsculo que divide com seu parceiro, mais parece um cubículo, tendo como vista panorâmica um prédio enorme cheio de janelas que ofuscam a privacidade e o sol, embora o corretor tente incutir na cabeça deles, de forma paradoxal, que ali é um espelho de bons momentos e prazeres da vida. Depois vem a compra do carro esportivo e assim vai se sucedendo, com carnês e notificações se empilhando em casa, sobrando muitas vezes para o sogro quitar as dívidas.

Nem mesmo o emprego de manicura e maquiadora que arranja soluciona os problemas, causam ainda outros e o desvio de personalidade se escancara naquela garota mimada e fútil, que não tem limites na vida, deixando entrar em colapso estrutural seu casamento, já com o conflito cultural e civilizatório se mostrando com clareza. É iminente a traição e os valores se alteram drasticamente, tendo sua própria personalidade entrando em profunda confusão e instabilidade, restando a infidelidade e a perda inexorável da dignidade. Marjoline é a síntese daquela sociedade consumista pós-guerra, metaforicamente muito elaborada por Gitai, que passeia sua câmera pelas ruas de Paris, com seus bares, pontes e monumentos, sempre com olhar no futuro. As belas canções de amor tocadas durante o longa-metragem dão um toque de poesia e frescor àqueles personagens atormentados e estressados pela falta de dinheiro e o exagero desproporcional advindos de uma recessão.

Gitai dirige com uma marcante beleza plástica, pois seu filme não tem gritos ou barulhos, exceto em surtos esporádicos pontuais de Marjoline. Os personagens quase que sussurram nos ouvidos, demonstrando-se que para se atingir um clima tenso e dramático, basta muitas vezes o olhar ou palavras ditas com eficiência e clareza de conteúdo, eliminando-se as apelações e os excessos gramaticais verborrágicos dispensáveis, o que tornam uma aula de cinema neste imperdível Rosas a Crédito, ressuscitando da mesmice Amos Gitai.

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