sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Um Homem Que Grita



Dor Silenciosa

O cinema da África está de parabéns com este excelente filme vindo da República do Chade Um Homem Que Grita, quarto longa-metragem do cineasta Mahamat-Saleh Haroun e ganhador do Prêmio do Júri de Cannes do último festival, que esteve na competição da 34a. Mostra de Cinema Internacional de São Paulo deste ano. Fizera antes seu primeiro longa Bye Bye Africa (1999), eleito o Melhor Filme do Festival de Veneza. Também dirigiu Abouna, Notre Pére (2002) e Durrat, Dry Season (2006), ganhando o Prêmio Especial do Júri de Veneza, todos inéditos no circuito comercial brasileiro.

O diretor foi feliz no seu roteiro enxuto e conta com elegância esta comovente história de um pai de 55 anos e seu filho de 20 anos, dentro uma conturbada guerra civil no país africano da República do Chade, onde muitos habitantes fogem desesperadamente para países vizinhos como a República do Congo e República dos Camarões. A cena inicial dá o mote e a diretriz que seguirá a película, numa metáfora esplendorosa, quando dentro da piscina do hotel de luxo da cidade de N´Djamena, fica evidente a disputa fratricida. De um lado o pai Adam (Youssouf Djaoro, em notável atuação) é um ex-campeão nacional de natação em conflito com seu filho Abdel (Diouc Koma) que busca espaço profissional e disputam a mesma vaga de salva-vidas daquele hotel comprado por investidores chineses. Adam simboliza um falso patriotismo com uma visão caolha do mundo, ao pensar que se perder a vaga para o filho seu mundo acaba, ou como ele mesmo afirma: "mudou o mundo, não eu".

Os problemas sociais se avolumam e o cozinheiro, melhor amigo de Adam, é despedido sem maiores explicações, ao ficar velho e doente, torna-se descartável. A trama parece conduzir para os problemas inerentes daqueles que estão na iminência de ingressar na terceira idade, como foi visto recentemente no bom filme argentino Dois Irmãos (2010), de Daniel Burman, que abordou e desenvolveu com muita clareza e sutileza o tema. Adam dá mostras de sua preocupação, ao perguntar ao filho de forma sintomática, se ele também o achava velho. O clima é tenso entre os dois e a mãe da garoto questiona e busca explicação para aquele silêncio sepulcral entre pai e filho na hora do jantar.

Mas o diretor redireciona seu roteiro com habilidade para os conflitos da guerra civil e os destroços que sobraram como uma herança maldita da luta fratricida já anunciada no prólogo. Sem tomar partido, mostra os rebeldes de um lado e as forças governamentais de outro, tendo ambas suas implicações políticas e os excessos inerentes de uma batalha entre irmãos, tema visto recentemente em outra produção africana White Material (2009), dirigido pela francesa Claire Denis, com Isabelle Huppert, que não chega a evoluir na profundidade aguardada, acaba por diluir-se em cenas de trucidamentos exagerados das guerrilhas, faltando uma direção mais firme e capaz, naufragando num final melancólico sem inspiração.

Um Homem que Grita vai avançando com extrema sutileza e dor, como da cena do aparecimento daquela jovem grávida de Abdel, faz com que o pai caia em profunda tristeza e o tardio arrependimento por entregar o próprio filho para o Exército do Chade, ao invés de contribuir financeiramente na campanha de arrecadação, não por ser um patriota convicto, porém levado pelo sentimento de perda de espaço na piscina, ao ser guindado para um humilde posto de porteiro do hotel. A felicidade momentânea vira uma drama familiar, com a tragicidade se anunciando como castigo pelo egoísmo e o ressentimento da traição se abatendo na alma que grita do pai. Os enfoques são muitos no longa de Haroun, deixando desfilar com magnífica profundidade, como nas cenas da busca do filho no acampamento, a peregrinação naquela motocicleta velha levando aqueles personagens com dignidade para a bancarrota, existindo antes a purificação no final e o perdão sendo implorado por aqueles olhos entristecidos diante daquelas profundas águas que correm no rio e descem lenta e silenciosamente, num epílogo de tarde angustiante que nunca será esquecido por Adler naquele cerimonial funesto.

Haroun sabe lidar com as emoções sem se deixar levar pela pieguice, deixando fluir a reflexão nos temas sugeridos como a tristeza pelo arrependimento; a ética paternal; o falso patriotismo; a traição e a disputa de espaço; abalados num relacionamento estremecido pela perda da grandeza e da dignidade, diante da iminência da terceira idade, resultado do medo da velhice. Há o pano de fundo da guerra civil sendo abordado com equilíbrio, levando para os questionamentos internos e externos.

Com temas e subtemas dignos, fazem deste longa um soberbo exemplar do cinema realizado na África, deixando como resultado um olhar terno e perturbador para os seres transgressores dos limites éticos e morais, que não medem consequências, mesmo que a dor consuma-os com força arrebatadora. Rodado em longos planos-sequência como instrumentos de narrativa, é pontuado pelo silêncio, com elipses no tom certo fazem deste longa preocupado com o ser humano e sua consciência, inserindo-se desde já, como uma das grandes surpresas do ano.

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