quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Caterpillar)















Caterpillar

O diretor Koji Wakamatsu é um experiente cineasta japonês que realizou este estonteante longa-metragem Caterpillar (lagarta) sobre os horrores da guerra e seu inventário macabro e horrendo, como a sobra mutilada de um ser humano que é recebido com condecorações de medalhas e levado ao topo da glória como herói "Deus da Guerra".

Wakamatsu foi produtor-executivo de direção de Nagisa Oshima no polêmico Império dos Sentidos (1976), sobre a paixão obsessiva de uma ex-prostituta pelo chefe de uma propriedade, onde ela é contratada. Um romance sem limites na busca do prazer, em que os desejos se confundem e o casal é envolvido numa atmosfera sensual e sem precedentes, com um final surpreendente e inusitado para aqueles anos setenta. O ato sexual incontido é novamente abordado como um subtema neste longa, mas não dissociado do contexto hipócrita e frio das relações que envolvem os protagonistas vitimizados pelo sistema.

O drama gira em torno da 2ª. Guerra Sino-Japonesa, de 1937 a 1945, quando o tenente Kurokawa (Keigo Kasuya) retorna para casa, recebendo todas as honrarias e condecorações do Japão pelo seu gesto bravo na luta contra a China. É reconhecido nacionalmente como um grande herói, embora tenha perdido suas pernas, braços, a fala, parte do lado direito da cabeça queimada e deformada, reduzido a uma miniatura humana de somente tronco com um pênis que quer se saciar constantemente, resultante de seu apetite sexual voraz.

A esposa Shigeko (Shinobu Terajima) é vista e aclamada como a grande mulher do tenente, sendo que as esperanças dos membros da família e da sociedade local recaem sobre seus ombros, para que honre o imperador japonês e o país, tornar-se um exemplo de dedicação de assumir seu papel, mesmo que a revolta, a angústia, a dor, a mágoa e todos seus desejos femininos, passem a ser ignorados literalmente, em nome de uma causa que não lhe foi consultada previamente. Nosso herói tem um passado que não é recomendável, pois na guerra estuprou chinesas indefesas em meio a incêndios em suas residências, espancava sua mulher antes de ir para o front. Agora é a vez de dar o troco com todo ódio e irresignação daquela que tem que lhe servir sexualmente, lavar e fazer sua higiene pessoal, dar comida e bebida compulsivamente, embora haja uma crise de racionamento decorrente da guerra.

A cena em que há o reflexo do rosto queimado no lago é triste e dolorida para o tenente, arrastando-se como um lagarto deformado e em tom animalesco e brutal, metáfora de uma guerra deflagrada e que deixou resíduos. Outra metáfora é o apetite sexual descomunal para com as intrincadas políticas de guerras que ceifaram centenas de milhares de pessoas. Ficaram impunes as bombas que o Japão foi agraciado pelos EUA, como em Nagasaki e Hiroshima, referências explícitas feitas pelo diretor, como uma observação e um recado direto para aqueles que ainda continuam a usar da força bélica mundial. Os choques de imagens não são gratuitos, muito pelo contrário, estão inseridos num clímax elevado de insatisfação e realizado com dureza e contundência, mas jamais para explorar figuras disformes. Não deixar as consequências de uma batalha inglória passar sem uma abordagem profunda é o principal eixo e objetivo deste veterano diretor sempre preocupado com as mazelas de seu país, num passado que não dever ser esquecido.

Caterpillar se insere e pode ser classificado como um longa bizarro, mas os seus efeitos nefastos e devastadores, resultantes de uma reflexão pontual, faz com que as cenas que desfilam tenham o caráter da dor e da demagogia dos seus governantes estampados naquela criatura em forma de miniatura que sobrou da guerra. Fruto é claro dos poderes definidos dentro dos gabinetes, como se vê nas homenagens emblemáticas em praça pública. Um filme digno e eloquente pela sua grandeza.

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