quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

De Coração Aberto
















Tormentas do Vício

O filme De Coração Aberto foi escrito e dirigido pela promissora cineasta francesa Marion Laine. Em 1998, dirigiu seu primeiro curta-metragem Le 28, após realizou outros dois curtas: Derrière la Porte (2000) e Quiproqu Eau (2006). Em 2003, participou do média-metragem coletivo Hôtel des Acacias, estreou em longa com Um Coração Simples (2008). Agora encanta com seu poder de sutileza e brutalidade mesclados no comovente drama que traz um tema recorrente no cinema como o alcoolismo e suas consequências devastadoras, tanto no relacionamento profissional como na vida íntima a dois, como no clássico americano Farrapo Humano (1945), do mestre Billy Wilder, onde Ray Milland protagoniza aquele triste espetáculo dantesco de uma pessoa desmoronando; ou de quem está preso e dependente, como bem retratado em O Ébrio (1946), drama brasileiro do cinema novo, dirigido por Gilda de Abreu, com Vicente Celestino no papel do homem derrotado; e ainda no recente Coração Louco (2010), de Scott Cooper, sobre um famoso cantor de música country, beberrão inveterado e fumante contumaz.

Embora haja uma grande paixão entre o casal de médicos cirurgiões, fatores externos como o vício da bebida alcoólica causa estragos irreparáveis do autodestrutivo marido Javier, de impecável interpretação do venezuelano Edgar Ramirez, que tem em seu currículo o protagonista “Chacal” no drama épico Carlos (2010), de Carlos Assayas, e também no filme em cartaz A Hora Mais Escura (2012), de Kathryn Bigelow. Na outra ponta está Mila, interpretada por Juliette Binoche, em mais uma grande atuação desta magnífica e talentosa diva francesa, esbanjando como sempre sua beleza, sensualidade e carisma; está no ápice da carreira. Foi vista recentemente no longa A Vida de Outra Mulher (2012), da estreante Sylvie Testud, e em Elles (2012), de Malgorzata Szumowska.

A trama é bem conduzida pela cineasta que mostra com sensibilidade ao abordar um casal feliz que está junto há dez anos e opta por não ter filhos. Tudo andava bem até a médica engravidar e querer abortar. Para surpresa o marido se opõe e resolvem ter a criança. Neste meio tempo surgem imprevistos em suas vidas, como o afastamento drástico de Javier do bloco cirúrgico do hospital em que trabalha. É impedido de continuar realizando transplantes de coração, mesmo sendo considerado o melhor profissional da área. Resta-lhe como prêmio de consolação a condição secundária de apenas dar aulas. Mas o pior ainda estava por vir, o motivo da decisão fora uma denúncia pertinente de alcoolismo do profissional no horário de trabalho. Um drama que não cai na caricatura fácil e nem no melodrama, pois Binoche atua com vida e constrói uma médica com seus problemas pessoais que se agravam ainda mais, diante das constantes bebedeiras homéricas do marido e suas constantes acusações infundadas, por vê-la cada vez mais perto do cirurgião (Hipolyte Girardot) que o substitui e deixa transparecer seu amor platônico, flertando com a linda colega.

Laine cria um enredo para causar um verdadeiro furor de turbulência na vida de Mila, através de uma reflexão madura sobre o alcoolismo. O clímax se acentua com a evolução da gravidez, surgindo discussões e brigas violentas que causam instabilidade no casal, com cenas de violência explícita, porém sem exageros. Há uma explosão de raiva e ressentimentos de Javier, que vê sua vida fracassar. Mergulha em delírios de crises de ciúmes, tornando-o agressivo, o que o faz colocar o apartamento abaixo depois de surtos incontidos. O próprio filho que está para nascer é questionado e sua paternidade é colocada em dúvida, ao perder a própria consciência pelo desequilíbrio emocional de uma mínima racionalidade. Há um transtorno de personalidade pela decadência humana de um médico bem-sucedido que vira um decrépito, onde tudo está à deriva e o grande amor de sua vida escorrega entre os dedos com a iminência da perda, diante de sua instabilidade e derrocada como pessoa segura, dando margem para desconfianças e a insegurança toma-lhe por completo, sentindo-se um inútil parasita.

Baseado no livro Remonter L’Orénoque, de Mathias Enard, o longa reflete em algumas cenas, que o único lugar que o protagonista sente-se bem é uma jaula no parque, junto com um chimpanzé, como se o instinto animal lhe estivesse a dominá-lo irracionalmente. Há algumas similitudes com o dilacerante drama Amor (2012), de Michael Hanecke, como na finitude do casal pelo temática do alcoolismo e com final inusitado. Os sentimentos de amor e paixão são mostrados com intensidade e o epílogo remete para o drama franco-austríaco ganhador do Palma de Ouro e do Oscar de melhor filme deste ano. O impacto é suavizado levemente por Laine, mas são corações que buscam uma abertura no infinito para dar continuidade ao vínculo entre um homem e uma mulher que viviam com bom humor dentro de uma paixão juvenil estabelecida na primeira cena, em plena cirurgia de um transplantado. A analogia da vida por um fio, mencionada pelo marido numa das cenas, já demonstra um contraste com a existência inconsequente levada quando se joga na bebida.

De Coração Aberto é o retrato da queda vertiginosa de um profissional e a derrocada fulminante de uma vida compartilhada a dois, tendo como resultado a busca no paraíso ou um pós-vida abordado no brilhante Amor. Com o nascimento de uma nova vida, fruto de um louco amor, ao som de Besame Mucho, na bela versão de Tino Rossi, há a busca de uma relação universal neste cativante drama intimista de perdas e ganhos, ao melhor estilo da velha escola francesa.

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