quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O Som ao Redor



Vidas Silenciosas

Pernambuco está vivendo um bom momento no cinema de autor, como Árido Movie (2005), de Lírio Ferreira; Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Era uma Vez Eu, Verônica (2012), ambos de Marcelo Gomes; Baixio das Bestas (2006) e Febre do Rato (2011), todos de Cláudio Assis. Surge agora o badalado O Som ao Redor, do ex-crítico de cinema e diretor em seu segundo longa-metragem, Kleber Mendonça Filho, que lhe rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de melhor filme no Festival do Rio. Ficou ainda ao lado dos festejados longas Amor, de Michael Haneke e Lincoln, de Steven Spielberg, ao ser incluído entre os dez melhores de 2012, pelo crítico Anthony Oliver Scott, do New York Times. Sua carreira começou com os curtas A Menina de Algodão (2002), Vinil Verde (2004), Eletrodomésticas (2005) e Recife Frio (2009), estreou em longas com o documentário Crítico (2008).

Um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre a rua Setúbal, na zona Sul de Recife, mostrando belos lugares com moradias bem protegidas. Logo se percebe as crianças nos edifícios gradeados e com assistência de babás, mas em contrapartida a classe menos abastada é representada por Bia (Maeve Jinkings), uma mulher insatisfeita sexualmente, que busca o prazer na maconha e na relação alegórica com a máquina de lavar roupas- uma citação ao seu curta Eletrodomésticas- enquanto o marido dorme e ronca. Um retrato do cotidiano de uma dona de casa cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha.

Mendonça Filho não deixa escapar a imposição do coronelismo dominador, representado por Francisco (interpretado pelo escritor W. J. Solha) que manda e desmanda no entorno. Demonstra seu poder ao chamar o recém-contratado segurança do bairro Clodoaldo (Irandhir Santos- de convincente atuação) para uma boa conversa e já pede sem constrangimento para deixar em paz seu neto que tem por hobby fazer pequenos furtos, pois não quer que o garoto seja incomodado. Existe até uma pressão inicial ao garoto, mas logo há uma recuada estratégica. Só o primo João (Gustavo Jahn), também neto de Francisco, um rapaz que vende e aluga imóveis bate de frente com protegido avô. O longa reserva para a cena final a revelação inusitada do encontro para o acerto de contas do passado.

O Som ao Redor é fundamentalmente um filme silencioso que capta os barulhos externos, como do cachorro que late sem parar e causa insônia em Bia; bem como o argentino perdido na rua sonolenta, não acha o caminho da festa; há os pássaros cantando no mato que tomou conta do cinema em ruínas; ou do inusitado banho de cachoeira com sangue, como um prenúncio de coisas ruins que estão por vir. Paradoxalmente a insegurança vai instalando-se e reflete lentamente naquele bairro de classe média alta, em franca decadência, a perda da propalada tranquilidade dos moradores. Foram anos áureos que ficaram para trás, quando inexistiam as grades nas janelas, portões encadeados e câmeras de vigilância, símbolos de uma brutal realidade atual. Até a natureza torna-se ameaçadora, como no banho de mar na madrugada em área infestada de tubarões loucos para atacarem. São metáforas de um Brasil inseguro e rodeado pela miséria e pela onda de violência.

Mas o cineasta retrata com sensibilidade e sem estardalhaço os contrastes pela visão social nordestina como uma realidade brasileira num drama preocupado com as anomalias e distanciamento entre as classes sociais e a insegurança rondando por todos os lados. É bem peculiar na reunião de condomínio, onde há moradores atônitos e outros fora da realidade e do contexto; ou ainda a busca de uma alternativa para despedir por justa causa o velho e descartável porteiro cansado da vida e do trabalho.

Não é um filme sobre a violência urbana repetida à exaustão em várias obras similares, mas Mendonça Filho vai além e se fixa numa rua aparentemente calma e sem problemas para refletir pela densidade que converge para fatos além do bairro. A segurança é contraditória para os moradores: para uns trará harmonia; para outros surge como uma ameaça à paz. Uma trama que avança com cautela e sensibilidade sensorial dos sonhos convulsivos que poderão ser realidade.

Um cineasta que fala de sua aldeia com magnífica precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi. Todos os sons são familiares para o diretor, que apresenta um singular domínio de cenas nos planos e contraplanos, quase impecáveis, com uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade. Cada situação dos personagens torna-se autônoma na trama narrativa, embora direcione para a abordagem do coronelismo e seu domínio territorial no bairro, sem perder a poesia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este belo e badalado filme de cores bem brasileiras como uma obra maior no cenário nacional.

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