Vidas Silenciosas
Pernambuco está vivendo um bom momento no cinema de autor,
como Árido Movie (2005), de Lírio Ferreira; Cinema,
Aspirinas e Urubus (2005) e Era uma
Vez Eu, Verônica (2012), ambos de Marcelo Gomes; Baixio das Bestas (2006) e Febre
do Rato (2011), todos de Cláudio Assis. Surge agora o badalado O Som ao Redor, do ex-crítico de cinema
e diretor em seu segundo longa-metragem, Kleber Mendonça Filho, que lhe rendeu
o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de
melhor direção; e o título de melhor filme no Festival do Rio. Ficou ainda ao
lado dos festejados longas Amor, de
Michael Haneke e Lincoln, de Steven
Spielberg, ao ser incluído entre os dez melhores de 2012, pelo crítico Anthony
Oliver Scott, do New York Times. Sua carreira começou com os curtas A Menina de Algodão (2002), Vinil Verde (2004), Eletrodomésticas (2005) e Recife
Frio (2009), estreou em longas com o documentário Crítico (2008).
Um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a
estratificação social, através da captação da câmera que percorre a rua
Setúbal, na zona Sul de Recife, mostrando belos lugares com moradias bem
protegidas. Logo se percebe as crianças nos edifícios gradeados e com
assistência de babás, mas em contrapartida a classe menos abastada é
representada por Bia (Maeve Jinkings), uma mulher insatisfeita sexualmente, que
busca o prazer na maconha e na relação alegórica com a máquina de lavar roupas-
uma citação ao seu curta Eletrodomésticas-
enquanto o marido dorme e ronca. Um retrato do cotidiano de uma dona de casa
cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos
favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha.
Mendonça Filho não deixa escapar a imposição do coronelismo
dominador, representado por Francisco (interpretado pelo escritor W. J. Solha)
que manda e desmanda no entorno. Demonstra seu poder ao chamar o
recém-contratado segurança do bairro Clodoaldo (Irandhir Santos- de convincente
atuação) para uma boa conversa e já pede sem constrangimento para deixar em paz
seu neto que tem por hobby fazer
pequenos furtos, pois não quer que o garoto seja incomodado. Existe até uma
pressão inicial ao garoto, mas logo há uma recuada estratégica. Só o primo João
(Gustavo Jahn), também neto de Francisco, um rapaz que vende e aluga imóveis
bate de frente com protegido avô. O longa reserva para a cena final a revelação
inusitada do encontro para o acerto de contas do passado.
O Som ao Redor é
fundamentalmente um filme silencioso que capta os barulhos externos, como do
cachorro que late sem parar e causa insônia em Bia; bem como o argentino
perdido na rua sonolenta, não acha o caminho da festa; há os pássaros cantando
no mato que tomou conta do cinema em ruínas; ou do inusitado banho de cachoeira
com sangue, como um prenúncio de coisas ruins que estão por vir. Paradoxalmente
a insegurança vai instalando-se e reflete lentamente naquele bairro de classe
média alta, em franca decadência, a perda da propalada tranquilidade dos
moradores. Foram anos áureos que ficaram para trás, quando inexistiam as grades
nas janelas, portões encadeados e câmeras de vigilância, símbolos de uma brutal
realidade atual. Até a natureza torna-se ameaçadora, como no banho de mar na
madrugada em área infestada de tubarões loucos para atacarem. São metáforas de
um Brasil inseguro e rodeado pela miséria e pela onda de violência.
Mas o cineasta retrata com sensibilidade e sem estardalhaço
os contrastes pela visão social nordestina como uma realidade brasileira num
drama preocupado com as anomalias e distanciamento entre as classes sociais e a
insegurança rondando por todos os lados. É bem peculiar na reunião de
condomínio, onde há moradores atônitos e outros fora da realidade e do
contexto; ou ainda a busca de uma alternativa para despedir por justa causa o
velho e descartável porteiro cansado da vida e do trabalho.
Não é um filme sobre a violência urbana repetida à exaustão em
várias obras similares, mas Mendonça Filho vai além e se fixa numa rua
aparentemente calma e sem problemas para refletir pela densidade que converge
para fatos além do bairro. A segurança é contraditória para os moradores: para
uns trará harmonia; para outros surge como uma ameaça à paz. Uma trama que
avança com cautela e sensibilidade sensorial dos sonhos convulsivos que poderão
ser realidade.
Um cineasta que fala de sua aldeia com magnífica precisão,
seguindo a recomendação de Tolstoi. Todos os sons são familiares para o
diretor, que apresenta um singular domínio de cenas nos planos e contraplanos,
quase impecáveis, com uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem
cair na obviedade. Cada situação dos personagens torna-se autônoma na trama
narrativa, embora direcione para a abordagem do coronelismo e seu domínio
territorial no bairro, sem perder a poesia. São elementos bem caracterizadores
e envolventes que marcam com rara qualidade este belo e badalado filme de cores
bem brasileiras como uma obra maior no cenário nacional.
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