quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Lincoln















Mensalão Norte-Americano

A campanha aética dos jogos de poder e toda sua corrupção política são os principais componentes do roteiro na trama que enfoca a paixão de um homem por uma causa no fim da Guerra Civil e a reeleição do mítico Abraham Lincoln, o 16º presidente dos EUA nos primeiros dias de 1865, mas que lhe doía a cultura escravocrata. Lincoln é um épico de acontecimentos históricos que mexe na vida dos norte-americanos, que mostra uma luta incansável do presidente republicano reeleito para aprovar no Congresso a abolição da escravatura em meio a uma carnificina entre irmãos da mesma pátria. Um tema popularizado no clássico E o Vento Levou (1939), de Victor Fleming.

O longa retrata uma disputa enfadonha por votos, num duelo travado para conseguir o objetivo presidencial antes de terminar seu segundo mandato. Além de contar com o apoio maciço da bancada de seu partido, vai em busca de votos dos democratas oposicionistas que lhe oferecem uma forte resistência entre os parlamentares. Com discursos inflamados contrários aos direitos iguais entre brancos e negros, a oposição marca presença na tribuna, mas acaba perdendo líderes preciosos que se aliam à situação.

Mas Steven Spielberg não é o mesmo de seu último longa Cavalo de Guerra (2011), da bela e profunda amizade de uma insuperável solidariedade entre um jovem e um cavalo puro sangue. Longe do encantamento terno de E. T.- O Extra Terrestre (1982), ou da dramaticidade eloquente de A Lista de Schindler (1993), ou ainda do fascinante O Resgate do Soldado Ryan (1998). Em seu 28º longa, Spielberg está um pouco sonolento, ao deixar a câmera colhendo discursos vazios e diálogos soltos e improdutivos. Seu forte nunca foi a fala, pois a imagem sempre lhe marcou mais, a qual abandona propositalmente em quase toda a trama de Lincoln.

Embora indicado para doze estatuetas, deverá ganhar na categoria de melhor ator para o britânico Daniel Day-Lewis, o que seria sua terceira premiação e inédita no Oscar, superaria assim Tom Hanks, Dustin Hoffman, Jack Nicholson e Sean Penn, todos já ganharam duas vezes. Seu desempenho na pele do presidente histórico impressiona pela exuberância na performance, da primeira até a última cena, com uma voz tênue e calma, costas curvadas, carismático e sem exageros ou clichês caricatos, carrega o filme nas costas praticamente sozinho. Joaquin Phoenix no longa O Mestre (2012), de Paul Thomas Anderson, é o único que poderá estragar a festa e abocanhar o título de Lewis. Nem Sally Field no papel da esposa mandona consegue ofuscar o brilho do ator inglês. A primeira-dama Mary Todd Lincoln é uma mãe que já perdeu um filho nos braços e não quer perder o segundo na guerra sanguinolenta que se arrasta por quatro anos, razão pela qual bate de frente com o marido para tentar impedir que o outro filho vá lutar. Outro ator de boa atuação é Tommy Lee Jones no papel de um congressista do Partido Republicano, de uma ala mais radical. Suas aparições são recheadas de sarcasmo e tem vigor na defesa abolicionista, até porque vive com uma descendente negra e sua conduta é coerente. Junto com Lewis tentam não deixar cair o enredo na monotonia. Ao surgir em cena, embora poucas vezes, valoriza seu personagem.

Spielberg comete um equívoco capital, quando insiste explicitamente em glamourizar o protagonista, como se fosse um semideus. É cuidadoso no figurino e reconstitui a época com bastante correção e sobriedade. Mas peca fundamentalmente na edição, tornando arrastado e cansativo seus 153 minutos. Demonstra outro equívoco na montagem, tendo em vista que muitas cenas podiam ser cortadas, como se viu numa primeira hora exaustiva e pouco producente, derivando para uma lenga-lenga de diálogos inócuos, perdidos em formalismos estéreis e inconsequentes. A fotografia ocre-amarelada pouca funciona num ambiente escuro e sóbrio demais, beira a um rigorismo estético desproporcional e inadequado para um diretor avesso à retórica da persuasão e da eloquência de intermináveis lorotas. Quando o cineasta busca nas imagens, onde tem amplo domínio, demonstra capacidade singular, como no episódio do filho de Abraham Lincoln observando o carregamento de pedaços de pernas e braços sendo jogados na vala comum; ou no epílogo com o presidente deparando-se com a cena dantesca de corpos jogados uns sobre os outros, já cansado e demonstrando um profundo mal-estar desanimador com uma guerra absurda de valores invertidos, bem como num prenúncio de seu assassinato que lhe ceifaria a vida.

Lincoln é inferior ao filme Tudo pelo Poder (2011), de George Clooney, que abordava os ardis inescrupulosos, tornando-se cético pela forte consistência de personagens com diálogos equilibrados, revertendo e mudando as expectativas. Mas Spielberg mostra com menos ardor que desde aquela época já havia conchavos inescrupulosos e a corrupção estava presente para serem aprovados projetos de interesses do governo, como uma espécie de mensalão de nossos dias, embora sem o uso direto de dinheiro em contas correntes de laranjas, mas com recompensas por compras de cargos e apoios políticos desastrados e repulsivos, ainda que a causa fosse boa, como diz o deputado radical em sua última estocada.

A aprovação da 13ª Emenda da Constituição no Congresso dos EUA para a abolição dos escravos, mesmo com toda legitimidade, soa no filme como um propaganda governamental para causar um diversionismo político, visando as famílias que perderam maridos e filhos na Guerra Civil e ufanisticamente saudarem “a democracia americana”, através da voz embargada do presidente, mesmo com a fúria dos focos sulistas rebeldes e contrários ao fim da escravatura e favoráveis ao prosseguimento das batalhas campais.

Mesmo que haja um viés de visão corrupta dos homens públicos pelo poder e seus envolvimentos com situações escabrosas, dignas de maracutaias da melhor estirpe, Lincoln é realizado de forma romântica para agradar os norte-americanos e os velhinhos da Academia. A política sempre rendeu bons filmes e grandes tramas envolventes e Spielberg não deixa de dar sua razoável contribuição, faz concessões, equivoca-se e mostra distorções cinematográficas. Mas tudo pode acontecer em se tratando de uma produção de doze indicações ao Oscar, até ganhar é possível, embora com poucos méritos está longe das melhores obras do realizador.

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