Vingança no Velho Oeste
Quentin Tarantino em sua última frase de Bastardos Inglórios (2009) dizia:
"acho que essa é a minha obra-prima". E era mesmo. Um filme recheado
de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a
vingança explícita do massacre da família estampado no rosto da judia-francesa,
reescreveu a história de forma consagradora. Embora haja algumas restrições
pela facilidade da violência, arrasa novamente com Django Livre reescrevendo a saga no efervescente e bem original
longa que dá oportunidade aos escravos do Sul dos EUA, dois anos antes da
sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os brancos que
tanto lhe oprimiram. É a vingança escravocrata no Velho Oeste contada pelo irrequieto
e inesgotável cineasta, assim como fizera em Bastardos Inglórios , seguindo a mesma estética
narrativa desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama. Agora é só
aguardar o filme que fechará a trilogia.
Já na cena inicial arrebata o espectador com a trilha da
belíssima música-tema composta por Luis Enríquez Bacalov para o cult spaguetti western Django (1966), de Sérgio Corbucci, numa
bela homenagem ao filme inspirador de Tarantino que coloca frente a frente os
dois protagonistas no encontro para tomar uma bebida na fazenda do excêntrico
vilão Calvin Candie (Leonardo DiCaprio- em ótimo desempenho). De um lado está o
Django de Corbucci, estrelado por Franco Nero, faz uma ponta como um senhor de
terras que adora lutas de escravos; de outro lado vemos um Django remasterizado
como um escravo com brasa nos olhos (Jamie Foxx- impecável interpretação).
O faroeste em nada se compara com o filme de Corbucci, pois
Tarantino é hábil na condução da trama pela conveniente e suposta amizade do
alemão Dr. King Schultz (Chistoph Waltz- o impagável coronel Landa de Bastardos Inglórios; a atuação deste
ator austríaco tem uma grandeza de absoluta precisão em seu comportamento e no
jogo de palavras, tanto nas perguntas como nas aparições impecáveis, rouba literalmente
o filme pela sua extraordinária performance novamente), na pele de um caçador
de recompensas em busca de dinheiro fácil, anda atrás de indivíduos que valem
muito dinheiro. Ao comprar a liberdade de um negro que conhece três procurados
que renderão bons dividendos e que está à procura da sua mulher Broomhilda
(Kerry Washington), se estabelece um vínculo de cooperação. O alemão é um
obcecado por recompensas financeiras e o recém-alforriado busca sua amada, mas
incomoda-o ver de negros chicoteados e esfolados de forma exposta visceralmente
por homens brancos, ou ainda a tétrica cena dos cachorros estraçalhando o
fugitivo.
No caminho há o cruzamento com o sádico Candie que se
satisfaz com as brigas entre escravos até à morte e é senhor e dono de
Broomhilda na sua fazenda. Uma referência à princesa que Sigfried tenta
resgatar no ciclo de óperas O Anel dos
Nibelungos, de Richard Wagner, fala alemão e nem assim consegue esconder de
Stephen (Samuel L. Jackson- de estupenda atuação), uma espécie de assessor e
bajulador que vende a honra e a dignidade ao patrão, torna-se um severo e
intransigente personagem contra a própria raça, mas que na lenda operística é o
dragão que vigia Brünnhilde.
Tarantino é um diretor irrequieto e inesgotável com seu
notável senso de deboche. Diverte-se com os brancos ao criar uma espécie de
fábula moderna colocando os negros como seres em vantagem, embora vitimimizados
e torturados pelos escravagistas. Pode parecer uma falsidade, mas o que
interessa é o prazer paradoxal da vitória, com a explosão e o banho de sangue dos
submissos negros aos seus pseudos dominadores. Não poupa ninguém e inexistem
santos em profusão. Veja
a sequência de tiros no prólogo e a explosão final no epílogo uma sarcástica
demonstração da troca de personagens, remetendo para Bastardos Inglórios, com abundância de tiros e sangue esguichando dentro
de uma violência incontida presente como ingredientes de uma luta dura, sem ser
gratuita.
Outra cena reveladora é a provocação bizarra ao grupo de
extermínio Ku Klux Kan, numa referência pastelona de sua idiota e estúpida
atividade de perseguição aos negros, mostrada de forma escrachada, além do
cavalo adestrado e os absurdos desta quase seita que beira o surrealismo, onde
os cavaleiros não enxergam, pois os furos dos panos não estão adequados aos
olhos, como metáfora de suas cegueiras. Incompreensível que Spike Lee tenha
criticado a abordagem do faroeste sem vê-lo “A escravidão nos EUA não foi um
spaghetti western de Sergio Leone, foi um holocausto”. Confessou que não viu o filme,
o que é pior ainda, não sabe o que está perdendo e atesta uma monumental
bobagem de um patrulheiro xiita.
Nada mais execrável e violento do que o horror da escravidão
de uma raça depauperada brutalmente. Uma abordagem digna e magnífica pelo olhar
de um cineasta irônico e de humor mordaz. Ao reescrever a história da
escravatura dá vazão para a vingança e o reparo de injustiças contra o negro e
o índio num EUA pré-guerra civil. Há a catarse de uma raça humilhada, mas que
pelas tintas fortes do diretor busca a redenção e a dignidade esfacelada no
tempo. Com uma trilha sonora sob embalo de Ennio Morricone- compositor
predileto de Sergio Leone, traz lembranças de seus antigos faroestes, bem como
de John Ford, prenunciando uma situação incômoda e perigosa; passando por 2Pac
e James Brow.
Django Livre tem a
beleza plástica e a astúcia de um jogo de xadrez que propõe uma magistral obra.
Ao desafiar a história e fazer seu julgamento próprio, como se fosse de todas
as vítimas escravizadas, conta de maneira corrosiva, numa sequência
espetacular, através de um roteiro esteticamente perfeito e de uma memorável
situação de pessoas que pela tolice tornaram-se irracionais ao extremo pelas
suas preferências raciais. Lava a alma até do mais distraído cinéfilo ainda confuso
pela variedade da irreverência e da criatividade espantosa desencadeada por um
cinema abundante de verdades e mentiras de um delírio salutar, mesmo com sabor
de déjà vu.
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