terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Django Livre

















Vingança no Velho Oeste

Quentin Tarantino em sua última frase de Bastardos Inglórios (2009) dizia: "acho que essa é a minha obra-prima". E era mesmo. Um filme recheado de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a vingança explícita do massacre da família estampado no rosto da judia-francesa, reescreveu a história de forma consagradora. Embora haja algumas restrições pela facilidade da violência, arrasa novamente com Django Livre reescrevendo a saga no efervescente e bem original longa que dá oportunidade aos escravos do Sul dos EUA, dois anos antes da sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os brancos que tanto lhe oprimiram. É a vingança escravocrata no Velho Oeste contada pelo irrequieto e inesgotável cineasta, assim como fizera em Bastardos Inglórios, seguindo a mesma estética narrativa desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama. Agora é só aguardar o filme que fechará a trilogia.

Já na cena inicial arrebata o espectador com a trilha da belíssima música-tema composta por Luis Enríquez Bacalov para o cult spaguetti western Django (1966), de Sérgio Corbucci, numa bela homenagem ao filme inspirador de Tarantino que coloca frente a frente os dois protagonistas no encontro para tomar uma bebida na fazenda do excêntrico vilão Calvin Candie (Leonardo DiCaprio- em ótimo desempenho). De um lado está o Django de Corbucci, estrelado por Franco Nero, faz uma ponta como um senhor de terras que adora lutas de escravos; de outro lado vemos um Django remasterizado como um escravo com brasa nos olhos (Jamie Foxx- impecável interpretação).

O faroeste em nada se compara com o filme de Corbucci, pois Tarantino é hábil na condução da trama pela conveniente e suposta amizade do alemão Dr. King Schultz (Chistoph Waltz- o impagável coronel Landa de Bastardos Inglórios; a atuação deste ator austríaco tem uma grandeza de absoluta precisão em seu comportamento e no jogo de palavras, tanto nas perguntas como nas aparições impecáveis, rouba literalmente o filme pela sua extraordinária performance novamente), na pele de um caçador de recompensas em busca de dinheiro fácil, anda atrás de indivíduos que valem muito dinheiro. Ao comprar a liberdade de um negro que conhece três procurados que renderão bons dividendos e que está à procura da sua mulher Broomhilda (Kerry Washington), se estabelece um vínculo de cooperação. O alemão é um obcecado por recompensas financeiras e o recém-alforriado busca sua amada, mas incomoda-o ver de negros chicoteados e esfolados de forma exposta visceralmente por homens brancos, ou ainda a tétrica cena dos cachorros estraçalhando o fugitivo.

No caminho há o cruzamento com o sádico Candie que se satisfaz com as brigas entre escravos até à morte e é senhor e dono de Broomhilda na sua fazenda. Uma referência à princesa que Sigfried tenta resgatar no ciclo de óperas O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, fala alemão e nem assim consegue esconder de Stephen (Samuel L. Jackson- de estupenda atuação), uma espécie de assessor e bajulador que vende a honra e a dignidade ao patrão, torna-se um severo e intransigente personagem contra a própria raça, mas que na lenda operística é o dragão que vigia Brünnhilde.

Tarantino é um diretor irrequieto e inesgotável com seu notável senso de deboche. Diverte-se com os brancos ao criar uma espécie de fábula moderna colocando os negros como seres em vantagem, embora vitimimizados e torturados pelos escravagistas. Pode parecer uma falsidade, mas o que interessa é o prazer paradoxal da vitória, com a explosão e o banho de sangue dos submissos negros aos seus pseudos dominadores. Não poupa ninguém e inexistem santos em profusão. Veja a sequência de tiros no prólogo e a explosão final no epílogo uma sarcástica demonstração da troca de personagens, remetendo para Bastardos Inglórios, com abundância de tiros e sangue esguichando dentro de uma violência incontida presente como ingredientes de uma luta dura, sem ser gratuita.

Outra cena reveladora é a provocação bizarra ao grupo de extermínio Ku Klux Kan, numa referência pastelona de sua idiota e estúpida atividade de perseguição aos negros, mostrada de forma escrachada, além do cavalo adestrado e os absurdos desta quase seita que beira o surrealismo, onde os cavaleiros não enxergam, pois os furos dos panos não estão adequados aos olhos, como metáfora de suas cegueiras. Incompreensível que Spike Lee tenha criticado a abordagem do faroeste sem vê-lo “A escravidão nos EUA não foi um spaghetti western de Sergio Leone, foi um holocausto”. Confessou que não viu o filme, o que é pior ainda, não sabe o que está perdendo e atesta uma monumental bobagem de um patrulheiro xiita.

Nada mais execrável e violento do que o horror da escravidão de uma raça depauperada brutalmente. Uma abordagem digna e magnífica pelo olhar de um cineasta irônico e de humor mordaz. Ao reescrever a história da escravatura dá vazão para a vingança e o reparo de injustiças contra o negro e o índio num EUA pré-guerra civil. Há a catarse de uma raça humilhada, mas que pelas tintas fortes do diretor busca a redenção e a dignidade esfacelada no tempo. Com uma trilha sonora sob embalo de Ennio Morricone- compositor predileto de Sergio Leone, traz lembranças de seus antigos faroestes, bem como de John Ford, prenunciando uma situação incômoda e perigosa; passando por 2Pac e James Brow.

Django Livre tem a beleza plástica e a astúcia de um jogo de xadrez que propõe uma magistral obra. Ao desafiar a história e fazer seu julgamento próprio, como se fosse de todas as vítimas escravizadas, conta de maneira corrosiva, numa sequência espetacular, através de um roteiro esteticamente perfeito e de uma memorável situação de pessoas que pela tolice tornaram-se irracionais ao extremo pelas suas preferências raciais. Lava a alma até do mais distraído cinéfilo ainda confuso pela variedade da irreverência e da criatividade espantosa desencadeada por um cinema abundante de verdades e mentiras de um delírio salutar, mesmo com sabor de déjà vu.

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