Justiça Dolorida
Philippe Lioret é conhecido por seu surpreendente filme Bem-Vindo (2009), numa abordagem harmônica
sobre a política das imigrações que causou muita polêmica na França, por tratar
dos desdobramentos sociais e políticos, com explícita intolerância racial,
evidenciado pelo choque cultural e a iminente violência, decorrentes da questão
da imigração mal resolvida por dezenas de anos. Foi eleito o melhor filme
europeu da Mostra de 2009 do Festival de Berlim. Lioret vem agora com o
instigante Tudo o que Desejamos, em
nova parceria com o roteirista Emmanuel Corcol e com o admirável ator sempre em
grande performance Vincent Lindon, que interpretou o professor de natação no
longa anterior.
O drama é adaptado da obra Outras Vidas que Não a Minha, de Emmanuel Carrère, aborda a vida de
uma juíza idealista em Lyon, de infância pobre numa cidade vizinha do interior,
teve o abandono do pai aos dois anos e conviveu com a mãe, uma mulher que gastava
desregradamente, ou seja, uma legítima perdulária sem qualquer controle do
dinheiro. Claire (Marie Gillain- de grande atuação, além de sua beleza)
formou-se com sacrifícios, casou-se com Chisthophe (Yannick Renier), um homem
pacato, voltado para as coisas domésticas que adora plantar e cozinhar para
agradar a mulher. Um dos filhos menores é amiguinho da filha de Cèline
(Armandine Dewasmes), que por ironia do destino é centro de uma causa judicial numa
audiência sobre financiamentos de empréstimos pessoais, onde Claire é a juíza
por simples acaso. Aplica a lei com dureza contra as grandes financeiras e busca
uma justiça equilibrada, mas envolve-se num processo administrativo no Conselho
da Magistratura e é afastada por suposta imparcialidade no processo de Cèline.
A trama mostra a jovem magistrada se deparando com um câncer
degenerativo, oriundo de um tumor cerebral agressivo que funciona como uma metáfora
de um sistema econômico corroído e com o beneplácito de um Judiciário estagnado
e agonizante, distante das pessoas pouco esclarecidas que se jogam de ponta
cabeça em empréstimos de dinheiro, contraindo dívidas impagáveis através de
cláusulas leoninas em contratos com redações em letras bem abaixo de 5 mm , inferiores ao estipulado
em códigos internacionais, numa clara afronta aos direitos do consumidor. A aproximação com o colega juiz experiente Stéphane
(Lindon), um apaixonado pelo viril esporte rúgbi, traz novas luzes para o
judiciário, assumindo a causa e sentenciando favoravelmente. Há desdobramentos de
recursos e o processo vai até a Corte Internacional da Europa. O filme fica
dinâmico pelo cotidiano do embate sem ser técnico. Com o avanço progressivo da
moléstia, há uma reflexão sensível e implacável contra a injustiça praticada
pelas classes dominantes economicamente, através de um olhar sutil para com as pessoas
vitimadas pelo poder financeiro que assola aquele país e o mundo.
Um drama triste e belo paradoxalmente, quando da união de
dois defensores entusiastas por uma adequada legislação, mais equânime e não
discriminatória, numa luta que é travada com vigor até o fim, passando por
momentos tensos, como na cena do afogamento no lago, onde Claire busca nas reminiscências
de sua adolescência o resgate do passado, pela dor que ela carrega da mãe atolada
em dívidas, e no presente há um futuro incerto, por saber que não há
perspectivas de cura.
Tudo o que Desejamos
apresenta sentimentos que podem ser confundidos dos dois magistrados, ambos
casados, mas o lado humano prevalece sem um acentuado interesse sexual, como na
cena em que a juíza chama o colega de pai, para que ele assine sua alta no
hospital. O idealismo racional está acima dos sentimentos do coração, e a
amizade entre um homem e uma mulher pode ser por causa boa e justa, é o que
demonstra o cineasta.
Lioret afasta-se do melodrama com estilo e domínio das
cenas, não se deixa cair em sentimentalismos baratos ou pieguismos. Afirma-se
como um excelente diretor por retratar com dignidade alegórica as dificuldades
que passam os europeus em constantes desempregos de uma economia devastada por
circunstâncias decorrentes de uma crise sem precedentes. Está amparado por uma
trilha sonora densa que transmite a dor e a perda, neste notável drama edificante
sobre os valores humanos.
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