terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Amor
















Ocaso Agonizante

No longa-metragem A Professora de Piano (2001), o cineasta austríaco por adoção e alemão por nascimento Michael Haneke, evidencia seu talento na abordagem da personagem da professora que instiga pela perversidade latente de uma misteriosa educadora de música com gostos estranhos; em Cachê (2005), aborda as questões intrínsecas ao mistério de uma fita de vídeo enviada para a casa de uma casal francês que está sendo vigiada; e em A Fita Branca (2009) demonstra lucidez com a parábola sobre o nazismo que se alastrou pelo mundo e estigmatiza sutilmente o rigorismo da religião, propiciando questionamentos como o extremo ardor pela ordem.

Premiado com a Palma de Ouro em Cannes ano passado, escolhido como o melhor filme de 2012 pela Federação Internacional dos Críticos de Cinema e ganhador do Globo de Ouro este ano, Amor é um mergulho crepuscular na vida um casal de professores idosos aposentados da música, que vive apaixonado por mais de cincoenta anos em Paris e depara-se com a doença terminal. Haneke mostra o epílogo de uma existência e toda sua decomposição humilhante, decorrente de dois derrames cerebrais na mulher e sua decrepitude com o passar do tempo.

Um filme instigante sobre as relações humanas e o grande amor de Georges para com Anne. O relacionamento se intercala com as visitas esporádicas da fria, egoísta e pouco participativa filha Eva (Isabelle Huppert- uma coadjuvante de luxo em pequenas aparições) com seus problemas pessoais diante de uma mãe em estado beirando ao vegetativo. Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva arrasam na interpretação do casal de idosos, em papéis difíceis que requer uma entrega de corpo e alma aos protagonistas. Trintignant foi o ator da fase da nouvelle vague, trabalhou com François Truffaut, Claude Chabrol e Éric Rohmer, ou ainda com diretores renomados como Ettore Scola e Bernardo Bertolucci; Riva consagrou-se no memorável clássico Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais.

Rodado praticamente todo o longa no interior de um apartamento, exceto as cenas iniciais do teatro. Face a face estão marido e mulher, em todo o desenrolar da trama, em cenas inspiradíssimas, embora cruéis como o tapa no rosto em Anne aplicado por Georges, após cuspir a água com o remédio repelindo a situação caótica. Soa como um desabafo e um descontrole emocional, que irá se refletir na inusitada cena do travesseiro. A dor dilacerante corta e mexe com o espectador e suas emoções, mesmo sem ser um filme de grandiloquência, mas que se estende silenciosamente pelas dependências do apartamento. A ausência da trilha sonora é para dar um clímax de melancolia, apenas entrecortado pela bela cena do jovem ex-aluno que toca piano para sua professora, como se estivesse a homenagear a música e a vida.

O cineasta conduz a trama de forma enxuta, sem arroubos ou manifestações esperançosas, como já antecipa o prólogo. Num cenário que lembra o teatro e a peça sendo rodada em longos planos-sequência com alguns contraplanos menores que individualizam e marcam a dor dos protagonistas, bem como da mulher reclamando constantemente “que dói”. O companheiro pacientemente troca suas fraldas geriátricas, a alimenta com papinha na boca, medicação, água e lhe dá banho. Inicialmente há o auxílio da enfermeira, depois da cabeleireira, mas logo todas são dispensadas por inaptidão laboral com a aproximação da iminência do ocaso da vida.

Haneke não é unanimidade e chega a ser acusado de misantropo pela festejada revista francesa Cahiers du Cinèma, num entendimento equivocado de aversão à espécie humana lançado na edição de novembro. Talvez esta crítica desproporcional se deva por não usar subterfúgios no seu estilo direto e seco de dirigir, abordando a doença de forma nua, crua e arrebatadora, sem recursos alegóricos. A grande e única metáfora do filme é buscada na pomba invasora do apartamento e expulsa por Georges, assim como Anne quer libertar o corpo do espírito como se fosse um cativeiro indesejado, transposta para a magnífica cena final do retorno do casal ao teatro, sem as amarras do sofrimento angustiante da moléstia devastadora e implacável, numa poética licença lírica para amar. Como se a matéria e o espírito se unissem na busca da retomada do amor no cotidiano e a grande paixão se mostrasse indissolúvel. Usa as elipses das cenas com propriedade, mas com um olhar implacável.

Temas como a morte, solidão, doença e velhice foram exploradas com méritos inegáveis pelo genial Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957) e na incomparável e inigualável obra-prima Gritos e Sussurros (1972); ou ainda em Viver (1952), de Akira Kurosawa, mas em Amor há um naturalismo exposto como vísceras e a dacadência humana é intensa, embora bergmaniano na abordagem proposta, tem na forma a crueza direta e em nada comparável com a estética criativa e metafórica dos mestres inspiradores. O drama invoca uma notável reflexão sobre a morte, tem na vida um final que dilacera num contexto de grande amor e amizade como infinito neste fabuloso longa sobre o relacionamento a dois. Há subtemas interessantes como problemas das clínicas de repousos e hospitais sendo repelidos pela enferma quando ainda lúcida.

Amor é perturbador por destruir dogmas como a defesa de uma eutanásia abrupta redentora ao dar um soco no estômago do espectador, deixando-o meio grogue, mas ao mesmo tempo reflexivo sobre os métodos de carinho, ternura e da defesa incondicional do amor eterno, retirando os véus dos bons costumes, dando um tapa na cara da morte, como fez o protagonista num ato de desabafo pelo desespero, já perdendo a lucidez e partindo para o confronto entre vida e morte e as emoções existenciais sobre o progressivo fim do ser humano.

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