Ocaso Agonizante
No longa-metragem A
Professora de Piano (2001), o cineasta austríaco por adoção e alemão por
nascimento Michael Haneke, evidencia seu talento na abordagem da personagem da professora
que instiga pela perversidade latente de uma misteriosa educadora de música com
gostos estranhos; em Cachê (2005), aborda
as questões intrínsecas ao mistério de uma fita de vídeo enviada para a casa de
uma casal francês que está sendo vigiada; e em A
Fita Branca (2009) demonstra lucidez com a parábola sobre
o nazismo que se alastrou pelo mundo e estigmatiza sutilmente o rigorismo da
religião, propiciando questionamentos como o extremo ardor pela ordem.
Premiado com a Palma de Ouro em Cannes ano passado,
escolhido como o melhor filme de 2012 pela Federação Internacional dos Críticos
de Cinema e ganhador do Globo de Ouro este ano, Amor é um mergulho crepuscular na vida um casal de professores
idosos aposentados da música, que vive apaixonado por mais de cincoenta anos em
Paris e depara-se com a doença terminal. Haneke mostra o epílogo de uma existência
e toda sua decomposição humilhante, decorrente de dois derrames cerebrais na
mulher e sua decrepitude com o passar do tempo.
Um filme instigante sobre as relações humanas e o grande amor
de Georges para com Anne. O relacionamento se intercala com as visitas
esporádicas da fria, egoísta e pouco participativa filha Eva (Isabelle Huppert-
uma coadjuvante de luxo em pequenas aparições) com seus problemas pessoais
diante de uma mãe em estado beirando ao vegetativo. Jean-Louis Trintignant e
Emmanuelle Riva arrasam na interpretação do casal de idosos, em papéis difíceis
que requer uma entrega de corpo e alma aos protagonistas. Trintignant foi o
ator da fase da nouvelle vague,
trabalhou com François Truffaut, Claude Chabrol e Éric Rohmer, ou ainda com
diretores renomados como Ettore Scola e Bernardo Bertolucci; Riva consagrou-se
no memorável clássico Hiroshima, Meu Amor
(1959), de Alain Resnais.
Rodado praticamente todo o longa no interior de um
apartamento, exceto as cenas iniciais do teatro. Face a face estão marido e
mulher, em todo o desenrolar da trama, em cenas inspiradíssimas, embora cruéis
como o tapa no rosto em Anne aplicado por Georges, após cuspir a água com o
remédio repelindo a situação caótica. Soa como um desabafo e um descontrole
emocional, que irá se refletir na inusitada cena do travesseiro. A dor
dilacerante corta e mexe com o espectador e suas emoções, mesmo sem ser um
filme de grandiloquência, mas que se estende silenciosamente pelas dependências
do apartamento. A ausência da trilha sonora é para dar um clímax de melancolia,
apenas entrecortado pela bela cena do jovem ex-aluno que toca piano para sua
professora, como se estivesse a homenagear a música e a vida.
O cineasta conduz a trama de forma enxuta, sem arroubos ou
manifestações esperançosas, como já antecipa o prólogo. Num cenário que lembra
o teatro e a peça sendo rodada em longos planos-sequência com alguns
contraplanos menores que individualizam e marcam a dor dos protagonistas, bem
como da mulher reclamando constantemente “que dói”. O companheiro pacientemente
troca suas fraldas geriátricas, a alimenta com papinha na boca, medicação, água
e lhe dá banho. Inicialmente há o auxílio da enfermeira, depois da cabeleireira,
mas logo todas são dispensadas por inaptidão laboral com a aproximação da
iminência do ocaso da vida.
Haneke não é unanimidade e chega a ser acusado de misantropo
pela festejada revista francesa Cahiers
du Cinèma, num entendimento equivocado de aversão à espécie humana lançado
na edição de novembro. Talvez esta crítica desproporcional se deva por não usar
subterfúgios no seu estilo direto e seco de dirigir, abordando a doença de
forma nua, crua e arrebatadora, sem recursos alegóricos. A grande e única
metáfora do filme é buscada na pomba invasora do apartamento e expulsa por
Georges, assim como Anne quer libertar o corpo do espírito como se fosse um
cativeiro indesejado, transposta para a magnífica cena final do retorno do
casal ao teatro, sem as amarras do sofrimento angustiante da moléstia
devastadora e implacável, numa poética licença lírica para amar. Como se a
matéria e o espírito se unissem na busca da retomada do amor no cotidiano e a
grande paixão se mostrasse indissolúvel. Usa as elipses das cenas com
propriedade, mas com um olhar implacável.
Temas como a morte, solidão, doença e velhice foram
exploradas com méritos inegáveis pelo genial Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957) e na incomparável e
inigualável obra-prima Gritos e Sussurros
(1972); ou ainda em Viver (1952), de
Akira Kurosawa, mas em Amor há um
naturalismo exposto como vísceras e a dacadência humana é intensa, embora bergmaniano na abordagem proposta, tem
na forma a crueza direta e em nada comparável com a estética criativa e
metafórica dos mestres inspiradores. O drama invoca uma notável reflexão sobre
a morte, tem na vida um final que dilacera num contexto de grande amor e
amizade como infinito neste fabuloso longa sobre o relacionamento a dois. Há
subtemas interessantes como problemas das clínicas de repousos e hospitais sendo
repelidos pela enferma quando ainda lúcida.
Amor é perturbador
por destruir dogmas como a defesa de uma eutanásia abrupta redentora ao dar um
soco no estômago do espectador, deixando-o meio grogue, mas ao mesmo tempo
reflexivo sobre os métodos de carinho, ternura e da defesa incondicional do
amor eterno, retirando os véus dos bons costumes, dando um tapa na cara da
morte, como fez o protagonista num ato de desabafo pelo desespero, já perdendo
a lucidez e partindo para o confronto entre vida e morte e as emoções
existenciais sobre o progressivo fim do ser humano.
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