Alma Perdida
Em seu novo filme O
Mestre, o diretor californiano Paul Thomas Anderson segue uma trajetória
pessimista sobre o ser humano, assim como foi em Boogie Nights- Prazer sem Limites (1997), Magnólia
(1999) e Sangue Negro (2007). Há
cinco anos de abstinência criativa, o cineasta retorna com este devastador
drama ambientado nos anos de 1950, nos EUA, sobre os reflexos posteriores da
guerra como mote para a tentativa de recuperação, mesclada com a subjugação da
vítima por um misto de pastor e mentor espiritual, com amplo domínio da palavra
e da persuasão. Faz uso sistemático de métodos de regressão da mente por uma
manjada hipnose, em forma de terapia de grupo para obter mais seguidores.
A trama tem o marinheiro Freddie Quell (Joaquin Phoenix)
voltando dos combates da 2ª Guerra Mundial, com intermitentes lembranças sobre
os japoneses. Fica evidente sua perturbação pelo passado das lutas travadas e
seu comportamento errático como sinal de desequilíbrio extremo, que o faz um
alcoólatra que se utiliza da violência física para resolver os entraves na
vida. São evidências de um homem atordoado por traumas oriundos de sua passagem
no fronte que lhe marcam profundamente, causando-lhe enormes dificuldades de
readaptação à civilização pós-guerra. O longa traz ao espectador o momento que Freddie embarca por
acaso num navio iluminado que parte para alto-mar. É mais uma de suas fugas
para não ser morto, após aprontar mais uma tolice. Ao ser conduzido ao dono da
festa, o reverenciado mestre Lancaster Todd (Philip Seymour Hoffman) detém a
liderança de uma seita, mas que não passa de um golpista, auxiliado em seu
séquito pela esposa controladora da situação (Amy Adams), o casal de filhos e o
genro.
As atuações são extraordinárias, principalmente Phoenix com
uma expressão facial agonizante e um andar encurvado de um corcunda, dando vida
e construção para um personagem antológico, em sua melhor interpretação de toda
carreira. Deveria ganhar o Oscar de melhor ator pelo arrebatador desempenho,
pois já ganhou no Festival de Veneza, dividindo o título com Hoffman- que
concorre na categoria de ator coadjuvante no Oscar-, abocanhou ainda prêmio de
direção em Veneza. Bem
que merecia concorrer no Oscar como melhor filme e direção, mas
inexplicavelmente está fora, embora Ammy Adams concorra como atriz coadjuvante.
Porém Phoenix tem pelo caminho um Daniel Day-Lewis na pele do presidente
histórico no filme Lincoln, de
Spielberg, que também impressiona pela exuberância na performance, com uma voz
tênue e calma, costas curvadas, carismático e sem exageros ou clichês
caricatos, carrega o filme nas costas praticamente sozinho.
O cineasta desfila com habilidade seus personagens e as
situações vão se encaixando sem sensacionalismo, mas abstém-se das fórmulas e
métodos quantitativos e qualitativos da quadrilha, Mostra o grupo seguindo a
cura do passado e a suposta liberdade do futuro pelo livro “A Causa”, escrito
pelo líder espiritual para arrebanhar suas ovelhas desgarradas. Ele mesmo se
intitula um mestre e sabedor de tudo, ao autoproclamar-se como médico, médium,
filósofo e físico. O livro condutor da seita mescla diversas alternativas de
correntes, entre as quais o autocontrole, o conceito de extraterrestres e
hipnose, com a finalidade de ajudar pessoas na busca de algo promissor, como
bem enfatiza o estelionatário da cura.
Um filme com profundidade que apresenta Thomas Anderson com
firmeza e estilo próprio nesta obra autoral, ao buscar na relação do ex-militar
com o líder religioso. A desmistificação pelo diretor está alicerçada na
amostragem de novos seguidores e celebridades captadas por uma ciência empírica
de fundamentos duvidosos e deturpados espiritualmente. Deixa nas entrelinhas
que a farsa continua e se espalha, aproveitando as fraquezas pessoais e o controle
sobre os impulsos de um protagonista em crise existencial e sem um norte de
vida definido, que está preso e acorrentado ao seu mentor espiritual pelo
comando da palavra e a ameaça do retorno ao passado perturbador. Embora haja
uma reação para cortar o vínculo, há uma complexidade e um terror que lhe são
incutidos no seu psiquê de lembranças que tanto lhe assusta.
As águas revoltas simbolizam e remetem para seu estado de
desordem mental e a lucidez se esboroa como pó e que são apresentados em forma
de desenho de figuras humanas, como na cena sexual chocante entre Freddie com a
abstrata mulher de areia, soa como um desafio para o espectador em desvendar os
enigmas apresentados e tentar compreender aquela relação visceral de dentro de
um vazio existencial do subjugado. E o surto latente que emerge e toma conta do
protagonista é a simbolização do desespero autodestrutivo e revelador de uma
caótica e delicada relação de dependência, como se fosse o criador com sua
criatura.
O Mestre é um mergulho profundo no tema dos princípios da
cientologia, retrata mesmo que de forma sutil e sem citá-la explicitamente,
aborda com dignidade a irracionalidade das seitas, esmiuçando seus efeitos e
consequências advindas de um líder negativo pregando a imortalidade da alma
para afastar os traumas do passado que estão na memória, com uma notável
reflexão sobre as doutrinas que se aproveitam de uma situação de vulnerabilidade de
um ser humano fragilizado pela atormentação de uma guerra dolorosa e suas
perdas que teve, diante de um futuro incerto, numa fabulosa abordagem de um
diretor de elenco.
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