sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O Mestre



Alma Perdida

Em seu novo filme O Mestre, o diretor californiano Paul Thomas Anderson segue uma trajetória pessimista sobre o ser humano, assim como foi em Boogie Nights- Prazer sem Limites (1997), Magnólia (1999) e Sangue Negro (2007). Há cinco anos de abstinência criativa, o cineasta retorna com este devastador drama ambientado nos anos de 1950, nos EUA, sobre os reflexos posteriores da guerra como mote para a tentativa de recuperação, mesclada com a subjugação da vítima por um misto de pastor e mentor espiritual, com amplo domínio da palavra e da persuasão. Faz uso sistemático de métodos de regressão da mente por uma manjada hipnose, em forma de terapia de grupo para obter mais seguidores.

A trama tem o marinheiro Freddie Quell (Joaquin Phoenix) voltando dos combates da 2ª Guerra Mundial, com intermitentes lembranças sobre os japoneses. Fica evidente sua perturbação pelo passado das lutas travadas e seu comportamento errático como sinal de desequilíbrio extremo, que o faz um alcoólatra que se utiliza da violência física para resolver os entraves na vida. São evidências de um homem atordoado por traumas oriundos de sua passagem no fronte que lhe marcam profundamente, causando-lhe enormes dificuldades de readaptação à civilização pós-guerra. O longa traz ao espectador o momento que Freddie embarca por acaso num navio iluminado que parte para alto-mar. É mais uma de suas fugas para não ser morto, após aprontar mais uma tolice. Ao ser conduzido ao dono da festa, o reverenciado mestre Lancaster Todd (Philip Seymour Hoffman) detém a liderança de uma seita, mas que não passa de um golpista, auxiliado em seu séquito pela esposa controladora da situação (Amy Adams), o casal de filhos e o genro.

As atuações são extraordinárias, principalmente Phoenix com uma expressão facial agonizante e um andar encurvado de um corcunda, dando vida e construção para um personagem antológico, em sua melhor interpretação de toda carreira. Deveria ganhar o Oscar de melhor ator pelo arrebatador desempenho, pois já ganhou no Festival de Veneza, dividindo o título com Hoffman- que concorre na categoria de ator coadjuvante no Oscar-, abocanhou ainda prêmio de direção em Veneza. Bem que merecia concorrer no Oscar como melhor filme e direção, mas inexplicavelmente está fora, embora Ammy Adams concorra como atriz coadjuvante. Porém Phoenix tem pelo caminho um Daniel Day-Lewis na pele do presidente histórico no filme Lincoln, de Spielberg, que também impressiona pela exuberância na performance, com uma voz tênue e calma, costas curvadas, carismático e sem exageros ou clichês caricatos, carrega o filme nas costas praticamente sozinho.

O cineasta desfila com habilidade seus personagens e as situações vão se encaixando sem sensacionalismo, mas abstém-se das fórmulas e métodos quantitativos e qualitativos da quadrilha, Mostra o grupo seguindo a cura do passado e a suposta liberdade do futuro pelo livro “A Causa”, escrito pelo líder espiritual para arrebanhar suas ovelhas desgarradas. Ele mesmo se intitula um mestre e sabedor de tudo, ao autoproclamar-se como médico, médium, filósofo e físico. O livro condutor da seita mescla diversas alternativas de correntes, entre as quais o autocontrole, o conceito de extraterrestres e hipnose, com a finalidade de ajudar pessoas na busca de algo promissor, como bem enfatiza o estelionatário da cura.

Um filme com profundidade que apresenta Thomas Anderson com firmeza e estilo próprio nesta obra autoral, ao buscar na relação do ex-militar com o líder religioso. A desmistificação pelo diretor está alicerçada na amostragem de novos seguidores e celebridades captadas por uma ciência empírica de fundamentos duvidosos e deturpados espiritualmente. Deixa nas entrelinhas que a farsa continua e se espalha, aproveitando as fraquezas pessoais e o controle sobre os impulsos de um protagonista em crise existencial e sem um norte de vida definido, que está preso e acorrentado ao seu mentor espiritual pelo comando da palavra e a ameaça do retorno ao passado perturbador. Embora haja uma reação para cortar o vínculo, há uma complexidade e um terror que lhe são incutidos no seu psiquê de lembranças que tanto lhe assusta.

As águas revoltas simbolizam e remetem para seu estado de desordem mental e a lucidez se esboroa como pó e que são apresentados em forma de desenho de figuras humanas, como na cena sexual chocante entre Freddie com a abstrata mulher de areia, soa como um desafio para o espectador em desvendar os enigmas apresentados e tentar compreender aquela relação visceral de dentro de um vazio existencial do subjugado. E o surto latente que emerge e toma conta do protagonista é a simbolização do desespero autodestrutivo e revelador de uma caótica e delicada relação de dependência, como se fosse o criador com sua criatura.

O Mestre é um mergulho profundo no tema dos princípios da cientologia, retrata mesmo que de forma sutil e sem citá-la explicitamente, aborda com dignidade a irracionalidade das seitas, esmiuçando seus efeitos e consequências advindas de um líder negativo pregando a imortalidade da alma para afastar os traumas do passado que estão na memória, com uma notável reflexão sobre as doutrinas que se aproveitam de uma situação de vulnerabilidade de um ser humano fragilizado pela atormentação de uma guerra dolorosa e suas perdas que teve, diante de um futuro incerto, numa fabulosa abordagem de um diretor de elenco.

Nenhum comentário: