Ficção Real
A trajetória da vida e da carreira do ator teatral João
Carlos Castanha é o foco do longa-metragem gaúcho Castanha, escrito e dirigido pelo estreante Davi Pretto, de apenas
26 anos, produção executiva de Paola Wink, com produção associada da Casa de
Cinema de Porto Alegre, Sandro Fiorin e Gogó Conteúdo Sonoro, com selo da
inovadora Tokio Filmes. A realização aposta na mistura da realidade com a
ficção para criar um tom intimista na narrativa que mescla documentário e drama
para dar uma correta e adequada sintonia de um núcleo familiar, ao contar com
riqueza de conteúdo as andanças do artista que mora com sua mãe Celina Castanha
e dois cachorros no IAPI, um simpático bairro classe média de Porto Alegre,
onde nasceu e residiu na adolescência a cantora Elis Regina, em que é mencionada.
Além das dificuldades financeiras, a doce mãe de 72 anos divide o tempo de
convivência para dar apoio moral ao ex-marido no asilo e com um neto drogado
que ronda o apartamento para buscar comida e dinheiro, criando situações
embaraçosas com os vizinhos.
O protagonista tem 52 anos, trabalha à noite em bares gays
como transformista, é mostrado com crueldade a luta diária, além de se
apresentar em peças infantis e programas de televisão. Tem uma saúde debilitada
por baixa imunidade, além de seu futuro incerto e sombrio, de pouca perspectiva
para uma realização profissional que procura com seriedade. É atormentado pelo
passado que traz alguns fantasmas à tona e o presente do sobrinho craqueiro, na
qual faz o personagem transitar com alguma leveza entre a própria realidade com
a encenação e o diálogo com sua vida atribulada pelos dissabores e a violência
sempre presente no cotidiano que o ronda com amargura, através do clima
melancólico da bela fotografia de Glauco Firpo num
cenário sóbrio de lusco-fusco.
O docudrama flutua pelas mesmas águas de O Céu Sobre os Ombros (2010), do mineiro
Sérgio Borges, em que aborda com dignidade pessimista o retrato das vidas
perturbadas de três criaturas aparentemente exóticas na cidade de Belo
Horizonte, com personagens reais para construir um filme que mescla ficção e
documentário. Não utiliza um roteiro tradicional, com o mérito maior ao buscar personagens
bem peculiares e fruto de uma pesquisa detalhada e consistente dos meandros e das
consequências pelas dificuldades impostas aos cidadãos menos favorecidos pelo
destino. Pretto filma o dia a dia do protagonista e sua mãe, faz a mesma
integração para ter uma perfeita harmonia dos ingredientes, como também visto
em Terra Deu , Terra
Come (2010), de Rodrigo Siqueira, na abordagem de um garimpeiro conhecedor
dos vissungos, as cantigas em dialeto banguela cantadas durante os rituais
fúnebres da região, que eram muito comuns nos séculos 18 e 19 e Girimunho (2011), de Helvécio Marins Jr.
e Clarissa Campolina, drama que tem uma dinâmica documental como exemplo de
beleza e criatividade na história de duas amigas viúvas octagenárias que
reinterpretam seus cotidianos. São produções de pouco ou nenhum apelo
comercial, mas de um conteúdo significativo e marcante como expoentes de uma
mesma estética cinematográfica singular.
Apontado por alguns críticos como o mais significativo longa
gaúcho depois de Deu Pra Ti, Anos 70 (1981),
de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, exageros à parte, o badalado Castanha teve
estreia mundial na seção Fórum do Festival de Cinema de Berlim, também foi
exibido em Hong Kong ,
Las Palmas, Edimburgo e Copenhagen, bem como esteve no Festival do Rio e de
Paulínia e na Mostra de São Paulo. Com um roteiro baseado em conversas do ator
com o cineasta durante quatro meses, rendendo aproximadamente 40 páginas e
gravado em 19 dias, com cenas ficcionais e outras dentro de ambientes reais de
bares, uma loja no centro, peças que o ator tinha em seu acervo; outras
documentais fora do roteiro, entre as quais indo para o trabalho, arrumando-se,
apresentando-se. Uma composição total, em que às vezes, nem a equipe sabia se
estava rodando algo ficcional ou documental, como salienta o diretor e conclui "A
vida de João é muitas coisas ao mesmo tempo, a história de João tem crime, tem
amor, tem drama, tem passado, tem muita história".
O longa tem como fator
primordial ser híbrido, onde a ficção mistura-se com a triste realidade dos
indivíduos desglamourizados, em que vão passeando e apresentando suas
diferenças e dificuldades pela tela, deixando registradas as aspirações do
protagonista e sua empatia, embora mantida com certo distanciamento proposital
nos seus vários retratos, interpretados com desenvoltura e elegância pelo
brilho de João Carlos Castanha. O resultado é um filme denso, que mostra
as relações do ator com a família e seu trabalho, além da morte bem presente e
do envelhecimento que se aproxima, deixando uma trama consistente para uma
reflexão digna da realidade da comunidade homossexual com sobriedade, sem ser
definitivo na sua pretensão neste mergulho intimista.
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