quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Castanha


Ficção Real

A trajetória da vida e da carreira do ator teatral João Carlos Castanha é o foco do longa-metragem gaúcho Castanha, escrito e dirigido pelo estreante Davi Pretto, de apenas 26 anos, produção executiva de Paola Wink, com produção associada da Casa de Cinema de Porto Alegre, Sandro Fiorin e Gogó Conteúdo Sonoro, com selo da inovadora Tokio Filmes. A realização aposta na mistura da realidade com a ficção para criar um tom intimista na narrativa que mescla documentário e drama para dar uma correta e adequada sintonia de um núcleo familiar, ao contar com riqueza de conteúdo as andanças do artista que mora com sua mãe Celina Castanha e dois cachorros no IAPI, um simpático bairro classe média de Porto Alegre, onde nasceu e residiu na adolescência a cantora Elis Regina, em que é mencionada. Além das dificuldades financeiras, a doce mãe de 72 anos divide o tempo de convivência para dar apoio moral ao ex-marido no asilo e com um neto drogado que ronda o apartamento para buscar comida e dinheiro, criando situações embaraçosas com os vizinhos.

O protagonista tem 52 anos, trabalha à noite em bares gays como transformista, é mostrado com crueldade a luta diária, além de se apresentar em peças infantis e programas de televisão. Tem uma saúde debilitada por baixa imunidade, além de seu futuro incerto e sombrio, de pouca perspectiva para uma realização profissional que procura com seriedade. É atormentado pelo passado que traz alguns fantasmas à tona e o presente do sobrinho craqueiro, na qual faz o personagem transitar com alguma leveza entre a própria realidade com a encenação e o diálogo com sua vida atribulada pelos dissabores e a violência sempre presente no cotidiano que o ronda com amargura, através do clima melancólico da bela fotografia de Glauco Firpo num cenário sóbrio de lusco-fusco.

O docudrama flutua pelas mesmas águas de O Céu Sobre os Ombros (2010), do mineiro Sérgio Borges, em que aborda com dignidade pessimista o retrato das vidas perturbadas de três criaturas aparentemente exóticas na cidade de Belo Horizonte, com personagens reais para construir um filme que mescla ficção e documentário. Não utiliza um roteiro tradicional, com o mérito maior ao buscar personagens bem peculiares e fruto de uma pesquisa detalhada e consistente dos meandros e das consequências pelas dificuldades impostas aos cidadãos menos favorecidos pelo destino. Pretto filma o dia a dia do protagonista e sua mãe, faz a mesma integração para ter uma perfeita harmonia dos ingredientes, como também visto em Terra Deu, Terra Come (2010), de Rodrigo Siqueira, na abordagem de um garimpeiro conhecedor dos vissungos, as cantigas em dialeto banguela cantadas durante os rituais fúnebres da região, que eram muito comuns nos séculos 18 e 19 e Girimunho (2011), de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, drama que tem uma dinâmica documental como exemplo de beleza e criatividade na história de duas amigas viúvas octagenárias que reinterpretam seus cotidianos. São produções de pouco ou nenhum apelo comercial, mas de um conteúdo significativo e marcante como expoentes de uma mesma estética cinematográfica singular.

Apontado por alguns críticos como o mais significativo longa gaúcho depois de Deu Pra Ti, Anos 70 (1981), de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, exageros à parte, o badalado Castanha teve estreia mundial na seção Fórum do Festival de Cinema de Berlim, também foi exibido em Hong Kong, Las Palmas, Edimburgo e Copenhagen, bem como esteve no Festival do Rio e de Paulínia e na Mostra de São Paulo. Com um roteiro baseado em conversas do ator com o cineasta durante quatro meses, rendendo aproximadamente 40 páginas e gravado em 19 dias, com cenas ficcionais e outras dentro de ambientes reais de bares, uma loja no centro, peças que o ator tinha em seu acervo; outras documentais fora do roteiro, entre as quais indo para o trabalho, arrumando-se, apresentando-se. Uma composição total, em que às vezes, nem a equipe sabia se estava rodando algo ficcional ou documental, como salienta o diretor e conclui "A vida de João é muitas coisas ao mesmo tempo, a história de João tem crime, tem amor, tem drama, tem passado, tem muita história".

O longa tem como fator primordial ser híbrido, onde a ficção mistura-se com a triste realidade dos indivíduos desglamourizados, em que vão passeando e apresentando suas diferenças e dificuldades pela tela, deixando registradas as aspirações do protagonista e sua empatia, embora mantida com certo distanciamento proposital nos seus vários retratos, interpretados com desenvoltura e elegância pelo brilho de João Carlos Castanha. O resultado é um filme denso, que mostra as relações do ator com a família e seu trabalho, além da morte bem presente e do envelhecimento que se aproxima, deixando uma trama consistente para uma reflexão digna da realidade da comunidade homossexual com sobriedade, sem ser definitivo na sua pretensão neste mergulho intimista.

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