As Transformações
Mais um jovem promissor cineasta pernambucano alça alto voo
e conquista prêmios importantes, como a menção honrosa no Festival de Locarno,
na Suíça, com Ventos de Agosto, único
filme brasileiro a participar do evento. Premiado ainda no charmoso 47º.
Festival de Brasília com os troféus Candango para melhor atriz e fotografia e o
troféu Vagalume de melhor filme. Com apenas 31 anos, Gabriel Mascaro torna-se
um proeminente realizador por esta admirável e consistente estreia na ficção,
após dirigir com boa receptividade de público e crítica os documentários Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012).
O drama contou com um elenco de amadores e figurantes,
exceto a premiada atriz profissional Dandara de Morais que interpreta Shirley
contracenando com Geová Manoel dos Santos no papel do namorado Jeison. O par
central foi um dos poucos que estava previsto inicialmente no roteiro de
Mascaro, que logo misturou com o pré-escrito para dar liberdade nas ações de
improviso dos personagens que desfilaram na tela de forma espontânea. Nem mesmo
a protagonista tinha um roteiro definido, ao atuar sem um regramento ortodoxo,
ficou à vontade para improvisar. “Assim como a vida e a morte, que não são
separados, o real e o ficcional também estão ligados. São parte da mesma
questão. É por isso que para mim é importante trabalhar a convergência entre
tudo. São partes da mesma experiência de filmar e experimentar a vida”, em
entrevista coletiva do cineasta à imprensa do Festival de Locarno. Também o
diretor agiu de forma não convencional, ao filmar e montar simultaneamente,
como expõe: "tudo foi pensado para incorporar o imprevisto, apropriar-se
das coisas que iam surgindo".
A trama retrata Shirley que deixou a cidade para viver numa
pequena e pacata vila litorânea para cuidar da avó, em Alagoas. Lá , trabalhava
numa plantação de coco dirigindo um trator, gosta de música punk-rock, passa
Coca-Cola no corpo para se bronzear, tem como meta ser tatuadora e testa suas
habilidades num porco. Busca a felicidade na relação íntima com o namoradinho que
também trabalha na colheita de cocos. O rapaz tem como lazer a pesca
subaquática e chega até encontrar uma cabeça humana no fundo do mar. O filme
tem imagens deslumbrantes que contrastam com a pobreza e a desinformação dos
antigos moradores daquele lugar, onde o progresso inexiste e as pessoas já
envelhecidas vivem isoladas do mundo da tecnologia e seus avanços como a
internet, que estão completamente ausentes naquela região, em que até o celular
apresenta dificuldades de sinais.
O pequeno povoado litorâneo sai da mesmice diária com a
chegada de um pesquisador (o próprio diretor atua) de som dos fortes ventos alísios
com rajadas violentas no mês de agosto, oriundos da Zona de Convergência Intertropical,
trazendo altas marés que atingem a costa e mexem com as ossadas dos mortos no
cemitério próximo que está na iminência de desaparecer. Sua estadia trará
alguns inconvenientes involuntários e seu destino fará com que muitas coisas se
revelem, como a falência das instituições pela simbologia da Delegacia de
Polícia fechada em pleno dia, tendo um preso por equívoco, sem rosto, mas com
voz de protesto. É ele quem responde aos apelos de Jeison e informa que não há
expediente e nem servidores. Esta mesma polícia é comunicada pelo rapaz da
existência de um cadáver, acaba sendo designado o guardião do corpo, que com o
passar do tempo entra em estado de putrefação. Nenhum policial busca o morto e
a peripécia para levá-lo à cidade é digna de um romance de Kafka. Ali o cinema
é um instrumento de denúncia e indignação de uma comunidade isolada e
esquecida, refletida nos barcos velhos e sem segurança que são o único meio de
transporte daquela região inóspita e em ruínas.
Ventos de Agosto tem
uma fabulosa fotografia de imagens radiantes captadas que superam os diálogos, através
de uma trilha sonora adequada na maioria das cenas às pequenas alterações que
ocorrem naquele lugarejo pobre e hospitaleiro, com ruídos dos ventos uivantes e
suas intempéries climáticas, também presente no comovente drama familiar Filha Distante (2012) de Carlos Sorín,
bem como no belo longa gaúcho A Oeste do
Fim do Mundo (2012), de Paulo Nascimento. É inevitável também a comparação
com O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho.
O cinema autoral de Mascaro, assim como Mendonça Filho e
Nascimento, se recorre do cotidiano para falar de sua aldeia com magnífica
precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi. Todos os sons e ruídos são
familiares para o diretor, que apresenta um singular domínio de uma estrutura
narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade e sem perder a
poesia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara
qualidade este drama com essência da revolta da natureza para colocar os
contrastes da vida de um lugar pré-histórico com a existência do mundo dito
civilizado de embarcações com turistas ávidos pelo descanso, ignorando a total falta
de assistência social àqueles nativos e suas superações que virão como se um peculiar
novo dia nascesse como sugere o desenlace, embora dentro de um contexto
negativo da estratificação social pelas desigualdades contundentes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário