segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Cléo das 5 às 7)


Cléo das 5 às 7

A cineasta belga Agnès Varda, naturalizada francesa, é a grande homenageada deste ano na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, em uma justa celebração deste ícone do feminismo das telonas, que teve em As Praias de Agnès (2008), seu penúltimo filme e o segundo longa autobiográfico, ganhador do prêmio César de melhor documentário, com uma narrativa poética num passeio pelas praias que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida, lança um olhar breve de lembranças do passado. Visages, Villages (2017) é seu último filme, um documentário que realizou com o muralista JR numa viagem em um caminhão para realizar o documentário road movie, que venceu o Olho de Ouro da categoria no Festival de Cannes. Participou com o marido Jacques Demy no antológico movimento Nouvelle Vague, em uma contribuição valiosa e histórica para o cinema, ao lado de monstros sagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Marguerite Duras, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnais. A realizadora tem uma filmografia marcante e recheada de grandes filmes como As Duas Faces da Felicidade (1965), Teto Sem Lei (1985) e Os Catadores e Eu (2000).

Um clássico da diretora que foi revisitado nesta Mostra é o sempre atual Cléo das 5 às 7, uma produção de 1962, que teve sua assinatura também no roteiro. A cópia restaurada está perfeita e a fotografia em preto e branco de Jean Rabier permanece magnífica. Embalado pelas canções comoventes do inesquecível Michel Legrand, morto em 2004, a trama focaliza uma cantora pop, a protagonista que empresta o nome ao título (Corinne Marchand- não só linda como talentosa) que está terrivelmente preocupada com os resultados dos exames médicos remetidos para uma biópsia por suspeita de um doença gravíssima. Procura uma cartomante que coloca as cartas de tarô para uma consulta e as previsões para seu futuro não são nada boas, deixando-a ainda mais impressionada e desorientada pelo pavor da morte precoce. Enquanto aguarda o diagnóstico definitivo, que deve levar em torno de duas horas, fica andando pelas ruas no entardecer de Paris e conversando nos bistrôs e cafés, observa as pessoas nas ruas com seus semblantes, dando sentido para as pequenas coisas da vida, que antes não eram tão valorizadas pela vontade de continuar vivendo como agora está demonstrado.

No drama desfilam vários personagens, entre eles uma amiga e o namorado, sua empregada que tenta em vão dar conselhos positivos, colegas e amigos com boas intenções, até que encontra um homem otimista numa praça que a faz sentir toda a essência da vida de que nem tudo está perdido. Deve ou não aproveitar seus últimos momentos de sobrevivência, como imagina pelo encaminhamento da situação? Mas Cléo encontra a paz antes de buscar os resultados que parecem sombrios dos exames. Aos poucos vai deixando seu egoísmo latente de lado e passa a ser uma pessoa mais generosa e voltada para o mundo, com uma percepção social mais acurada. É uma sensível narrativa feminista sobre um acontecimento que parece ser banal, mas causa angústia no espectador sobre o desfecho da possibilidade de um câncer terminal no estômago. Varda não desfoca a câmera da personagem principal, que irá conduzir o espectador para os detalhes dos parisienses em seus cotidianos neste belo passeio intimista sobre as nuances femininas no contexto da sociedade da época que gira no seu entorno.

Cléo das 5 ás 7 aborda a beleza e as dúvidas da protagonista num momento ímpar de reflexão, quanto as dúvidas e os anseios pelo que virá do diagnóstico tão aguardado de sua saúde. Torna-se uma mulher observadora para vislumbrar além do medo que toma conta dela, prestando com muita atenção nos detalhes e nas pessoas que passam e seguem seus destinos, em meio aos conflitos internacionais que repercutem. Até um diálogo de estranhos num café soam como luzes e definições para radiantes momentos de pura poesia que contrastarão com as belezas naturais existentes no parque. Repassa sua vida em duas horas num tempo de realismo e sincronia com o passado pouco explorado, através de flashbacks mentalizados pela sensação que ainda existe de poder continuar usufruindo como momentos únicos buscados na memória. Há uma empatia entre a plateia e aquela mulher sofrida pela angústia de talvez estar se despedindo, mas sem pieguismos baratos, tudo com muita lucidez e com um uma certa realidade pela câmera que acompanha os passos de Cléo.

Um sutil drama existencialista por uma ótica diferente da visão estereotipada vista em muitas realizações menores sobre a vida e o fenecimento do ser humano, num sensível mergulho nas emoções e na luta pela sobrevivência. Não há lugar para futilidades, mas um retrato denso, às vezes leve, de uma construção dos fatores psicológicos inerentes da cantora atormentada pelas armadilhas do destino. Eis um mosaico bem fundamentado desta diretora autoral sobre o presente estremecido por uma circunstância, o passado revisto e colocado em xeque diante de um futuro incerto que só o tempo dirá. Mas antes há o medo que dará lugar para o êxtase de viver sem sobressaltos, deixando para trás o orgulho, a simbólica peruca como quem se liberta de um estorvo e as picuinhas rotineiras pelos caminhos, dando espaço para uma visão elevada do sentido da vida com toda dignidade como uma simbiose buscada na dor e na alegria.

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