quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Saudade)


Saudade

Numa coprodução do Brasil com Portugal e Angola temos outro sensível e interessante filme na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Saudade, com direção do paraibano (foi em Pernambuco que fez a carreira cinematográfica) Paulo Caldas, que dividiu o roteiro com Giovanni Soares. O cineasta realizou seu primeiro longa-metragem em parceria com Lírio Ferreira, o badalado Baile Perfumado (1997); dirigiu o documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000); depois veio Deserto Feliz (2007, 31ª Mostra) e País do Desejo (2011, 35ª. Mostra). Foi um dos roteiristas de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005, 29ª Mostra). Voltou com energia renovada para fazer um apanhado da busca para entender com dignidade o significado da palavra que empresta o nome ao título do filme. Retrata com sutileza a relação transversa estabelecida entre a produção artística e a saudade apresentada pelo olhar de artistas brasileiros e portugueses contemporâneos, entre os quais estão atores, atrizes, diretores de cinema, escritores, roteiristas, poetas, historiadores e cenógrafos, entre tantos.

Um quadro magnífico retratado nas viagens pelos países de língua portuguesa, com sotaques, melodias e olhares diversos, além dos aspectos plásticos e sensoriais que faz o espectador mergulhar no documentário através dos mares profundos de beleza e poesia, através da bela fotografia de Pedro Sotero. Uma instigante viagem com fados típicos pelo modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes lusófonos, como a fadista Ana Moura cantando sobre a temática proposta pela palavra náufraga que serve de título. Nos diálogos da entrevista com Caldas, ao melhor estilo do documentarista célebre Eduardo Coutinho ou do uruguaio Ricardo Casas, que realizou El Padre de Gardel (2013), domina a técnica de entrevistar e ouvir os personagens no vasto painel humano, deixando fluir o tema com brilho e elegância. Pode-se ver o historiador Duval Muniz afirmando que “a saudade é ontológica”; o ator luso-africano Miguel Hurst recita uma bela poesia sobre o verbete existente só na língua portuguesa, menciona o aroma de uma comida da infância: “O cheiro provoca algo tão vazio quanto as palavras que você não disse”; o escritor Bráulio Tavares é categórico: “Quem vive só para o presente é uma casa sem alicerces”; o trovador Antonio Marinho é direto: “Não ter saudade de nada é não ter nada na vida”.

Além das frases marcantes, há os depoimentos do festejado escritor Milton Hatoum definindo saudade como uma melancolia grega, embora a origem venha da etimologia do negro; o cineasta Ruy Guerra (na foto acima) manifesta-se sobre o pavor da morte derivando para um estado de irritação; o teatrólogo Zé Celso Martinez explica a relação da morte com a saudade pela tragédia na qual o drama perde espaço significativo. Uma atriz alemã não conhecia o sentido da palavra e toda sua extensão em seu país, descobriu aqui no Brasil, e indica definições como ausências de casa e do mundo como as mais próximas. Sem o uso da internet ou de outros meios, são vários depoimentos para a câmera em som direto dos intelectuais, além dos já mencionados, há a escritora Adriana Falcão, a fotógrafa Adelaide Ivánova, a coreógrafa Ana Guerra Marques, a roteirista Marta Nehring. Foram 300 horas de material filmado, decantados por dois anos na edição do olhar apurado da montadora Vânia Debs em harmonia perfeita pela sinestesia deste diretor autoral que se debruça sobre relatos de sobrevivência e de reinvenções com seus entrevistados.

Saudade não é somente um filme de planos de sensação de digressões alternados com falas e cantos entristecidos dos fados que exploram muito a dor do passado, quase à exaustão. É um fabuloso mergulho na sensibilidade do espectador, através dos enunciados sobre as derivações que vão da melancolia até o saudosismo, passeia pela dilacerante nostalgia enraizada, passando pelas “perdas de quem só sente por que já teve”, como afirma um personagem. Também a saudade da maternidade que passou e deixou marcas positivas relevantes para sempre, como afirma uma mulher; ou aquele que diz que só sente quem fica, quem parte vai em busca de novos horizontes, por isto a saudade está atenuada. O historiador Miguel Gonçalves Mendes parte para o exercício político: “Após 48 anos de ditadura, compramos o papel de vítima”. Uma similitude no tema está no comovente drama familiar Chega de Saudades (2008), de Laís Bodanzky, sempre atenta às circunstâncias e às reflexões de todas as idades e à intolerância, ao retirar o peso da terceira idade, mas com muita doçura demonstrava todos os seus problemas inerentes à velhice e o tempo que se esvai lentamente, deixando recordações mescladas com mágoas e lembranças de saudades da vida.

Um excelente filme que faz emergir as dores das mais diversas pulsações afetivas, pois há uma imensa identidade visual no filtro da realidade pela confissão espontânea com certa amargura de alguns mais saudosistas. Eis uma diversidade de definições e reflexões preciosas deste exercício documental de um ensaio para o significado de uma palavra eloquente, que todos da plateia sentiram no âmago, por já terem de alguma forma se deixado trair pelo choro, ou até esboçado um sorriso maroto de alívio de uma tensão, ou de uma dor lancinante acusada pela alma ou pelo coração. O cineasta marca com tintas fortes esta singular contribuição sobre a saudade e seu senso mais amplo derivando para o existencial, contado com ardor e dor, falando da morte que se aproxima ou que já tenha deixado rastros. O melhor é se deixar levar pelos fados melodiosos lusitanos com sua tradição e ouvir os relatos com vozes embargadas e em outras beirando uma existência da mais alta reflexão sobre a vida, mesmo com uma sensação melancólica inarredável e poética do sentimento e dos seus efeitos sensoriais.

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