Saudade
Numa coprodução do Brasil com Portugal e Angola temos outro
sensível e interessante filme na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário
Saudade, com direção do paraibano (foi em Pernambuco que fez a carreira
cinematográfica) Paulo Caldas, que dividiu o roteiro com Giovanni Soares.
O cineasta realizou seu primeiro longa-metragem em parceria com Lírio Ferreira,
o badalado Baile Perfumado (1997);
dirigiu o documentário O Rap do Pequeno
Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000);
depois veio Deserto Feliz (2007,
31ª Mostra) e País do Desejo (2011,
35ª. Mostra). Foi um dos roteiristas de Cinema,
Aspirinas e Urubus (2005, 29ª Mostra). Voltou com energia renovada para
fazer um apanhado da busca para entender com dignidade o significado da palavra
que empresta o nome ao título do filme. Retrata com sutileza a relação
transversa estabelecida entre a produção artística e a saudade apresentada pelo
olhar de artistas brasileiros e portugueses contemporâneos, entre os quais
estão atores, atrizes, diretores de cinema, escritores, roteiristas, poetas,
historiadores e cenógrafos, entre tantos.
Um quadro magnífico retratado nas viagens pelos países de
língua portuguesa, com sotaques, melodias e olhares diversos, além dos aspectos
plásticos e sensoriais que faz o espectador mergulhar no documentário através
dos mares profundos de beleza e poesia, através da bela fotografia de Pedro Sotero.
Uma instigante viagem com fados típicos pelo modo peculiar de expressão e
paixão dos seus intérpretes lusófonos, como a fadista Ana Moura cantando sobre
a temática proposta pela palavra náufraga que serve de título. Nos diálogos da
entrevista com Caldas, ao melhor estilo do documentarista célebre Eduardo
Coutinho ou do uruguaio Ricardo Casas, que realizou El Padre de Gardel (2013), domina a técnica de entrevistar e ouvir
os personagens no vasto painel humano, deixando fluir o tema com brilho e
elegância. Pode-se ver o historiador Duval Muniz afirmando que “a saudade é
ontológica”; o ator luso-africano Miguel Hurst recita uma bela poesia sobre o
verbete existente só na língua portuguesa, menciona o aroma de uma comida da
infância: “O cheiro provoca algo tão vazio quanto as palavras que você não
disse”; o escritor Bráulio Tavares é categórico: “Quem vive só para o presente
é uma casa sem alicerces”; o trovador Antonio Marinho é direto: “Não ter
saudade de nada é não ter nada na vida”.
Além das frases marcantes, há os depoimentos do festejado
escritor Milton Hatoum definindo saudade como uma melancolia grega, embora a
origem venha da etimologia do negro; o cineasta Ruy Guerra (na foto acima)
manifesta-se sobre o pavor da morte derivando para um estado de irritação; o
teatrólogo Zé Celso Martinez explica a relação da morte com a saudade pela
tragédia na qual o drama perde espaço significativo. Uma atriz alemã não
conhecia o sentido da palavra e toda sua extensão em seu país, descobriu aqui
no Brasil, e indica definições como ausências de casa e do mundo como as mais
próximas. Sem o uso da internet ou de outros meios, são vários depoimentos para
a câmera em som direto dos intelectuais, além dos já mencionados, há a
escritora Adriana Falcão, a fotógrafa Adelaide Ivánova, a coreógrafa Ana Guerra
Marques, a roteirista Marta Nehring. Foram 300 horas de material filmado,
decantados por dois anos na edição do olhar apurado da montadora Vânia Debs em
harmonia perfeita pela sinestesia deste diretor autoral que se debruça sobre
relatos de sobrevivência e de reinvenções com seus entrevistados.
Saudade não é
somente um filme de planos de sensação de digressões alternados com falas e
cantos entristecidos dos fados que exploram muito a dor do passado, quase à
exaustão. É um fabuloso mergulho na sensibilidade do espectador, através dos
enunciados sobre as derivações que vão da melancolia até o saudosismo, passeia
pela dilacerante nostalgia enraizada, passando pelas “perdas de quem só sente
por que já teve”, como afirma um personagem. Também a saudade da maternidade
que passou e deixou marcas positivas relevantes para sempre, como afirma uma
mulher; ou aquele que diz que só sente quem fica, quem parte vai em busca de
novos horizontes, por isto a saudade está atenuada. O historiador Miguel
Gonçalves Mendes parte para o exercício político: “Após 48 anos de ditadura,
compramos o papel de vítima”. Uma similitude no tema está no comovente drama
familiar Chega de Saudades (2008), de
Laís Bodanzky, sempre atenta às circunstâncias e às reflexões de todas as
idades e à intolerância, ao retirar o peso da terceira idade, mas com muita
doçura demonstrava todos os seus problemas inerentes à velhice e o tempo que se
esvai lentamente, deixando recordações mescladas com mágoas e lembranças de
saudades da vida.
Um excelente filme que faz emergir as dores das mais
diversas pulsações afetivas, pois há uma imensa identidade visual no filtro da
realidade pela confissão espontânea com certa amargura de alguns mais
saudosistas. Eis uma diversidade de definições e reflexões preciosas deste
exercício documental de um ensaio para o significado de uma palavra eloquente,
que todos da plateia sentiram no âmago, por já terem de alguma forma se deixado
trair pelo choro, ou até esboçado um sorriso maroto de alívio de uma tensão, ou
de uma dor lancinante acusada pela alma ou pelo coração. O cineasta marca com
tintas fortes esta singular contribuição sobre a saudade e seu senso mais amplo
derivando para o existencial, contado com ardor e dor, falando da morte que se
aproxima ou que já tenha deixado rastros. O melhor é se deixar levar pelos
fados melodiosos lusitanos com sua tradição e ouvir os relatos com vozes
embargadas e em outras beirando uma existência da mais alta reflexão sobre a
vida, mesmo com uma sensação melancólica inarredável e poética do sentimento e dos
seus efeitos sensoriais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário