quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (El Pampero)


El Pampero

Mais um outro argentino na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, em coprodução com o Uruguai e a França, El Pampero é um bom thriller policial com toques de drama familiar intimista, num retrato de uma situação aparentemente simples do personagem principal sendo colocado em uma conjuntura ameaçadora, de certa forma misteriosa, em uma fuga do seu destino para uma missão que se tornará perigosa com requintes que parecerão impossíveis de escapar das armadilhas que a vida propõe e na ameaça velada. Num cenário intrincado de dúvida quanto à inocência acaba inconscientemente envolvido na trama bem arquitetada. A direção é de Matias Lucchesi, que dividiu o roteiro com Gonzalo Salaya, neste segundo longa-metragem do jovem cineasta argentino nascido em Córdoba. Deu início em sua carreira com o curta Distâncias (2010), e a estreia nos longas se deu com Ciências Naturais (2014, 38ª. Mostra), vencedor do Urso de Cristal de Melhor Filme na Seção Generation Plus do Festival de Berlim.

Um suspense psicológico com um roteiro enxutíssimo, conciso, que vai direto ao ponto, sem grandes elucubrações de retóricas cinematográficas exaustivas com mirabolantes planos e contraplanos. El Pampero aborda com suavidade e, às vezes, levanta o tom para atingir um clímax bem satisfatório. Fernando (Julio Chávez- em desempenho elogiável) é um homem com um diagnóstico médico de uma doença terminal, como se vê no prólogo. O telefone toca enquanto ele arruma suas coisas para afastar-se da realidade e rumar para uma viagem espiritual sem destino. Ouve-se a voz do filho tentando insistentemente falar com o pai, que não atende e mostra-se sombrio com o triste quadro daquela dor pela amargura de seu olhar perdido. Embarca numa jornada em seu barco veleiro em busca de refúgio na aprazível natureza. Mas aparece de supetão uma grande surpresa no interior da embarcação, quando se depara com uma mulher jovial (Pilar Gamboa- impecável em seu papel) dentro do banheiro. Toda ensanguentada, ela foge de um assassinato ocorrido num barco de propriedade de um homem poderoso no Puerto Madero, jura ser inocente e não ter nenhuma participação no crime.

O roteiro dá uma guinada significativa, diante da decisão de Fernando em mudar seus planos para interromper seu retiro existencial. Ajudá-la seria sua última chance de sentir-se útil e continuar vivendo não como um parasita ou um pobrezinho resultado de uma rasteira do destino, mas como qualquer pessoa normal, sem piedade ou estigmatizado pela vitimização na sociedade. No trajeto de extradição da mulher, o barco singra as águas do estreito rio mansamente e repleto de lugares esplendorosos de uma natureza invejável de arbustos e árvores frondosas. Brilha a fotografia magistral de Guillermo Nieto, com uma invejável elaboração na qualidade do colorido e as sutilezas captadas pela precisão das suas lentes. Ela quer retornar para o Uruguai, seu país de origem, mas há um imprevisível imbróglio com um guarda costeiro (Cesar Troncoso- sempre ótimo em suas atuações) que se diz amigo do protagonista. Surgem diversos entraves e desejos doentios que dificultarão a missão da dupla, cada um com seu objetivo traçado.

Com a câmera dinâmica acompanhando os movimentos dos personagens em suas trajetórias, atua como cúmplice na realidade temporal e pela invasão da privacidade. A história é contada em doses homeopáticas para ir desenrolando lentamente o emaranhado dos enigmas que vão se dissipando e que irão se sobrepondo. Como se estivesse investigando um possível crime, embora exista uma forte tendência, há dissimulações que causam algumas dúvidas. A possível culpa escondida e uma tênue vingança se entrelaçam e caminham juntas para um desenlace de moderada dosagem de suspense que traz uma boa eficácia numa densa narrativa fiel, seca e de inegável qualidade, embora fosse possível um aprofundamento maior. O protagonista abatido por uma moléstia fatal e nebulosa mergulha numa imensa solidão, sendo sugerido pelo realizador uma possível ausência do filho que possa estar atormentando e corroendo seus pensamentos com um devastador sentimento de injustiça. A ligação telefônica no epílogo é reveladora e parece que é um grito para afastar os fantasmas decorrentes de uma situação da qual tenta se livrar com consequências bem realistas do acaso, como metáfora do vento (que empresta o nome ao título do longa) soprando para todas as direções do quadrante.

Importante se ressaltar a trilha sonora sem histeria e perfeita, que não chega a interferir na narrativa vigorosa e com sustentável fôlego no transcorrer do enredo. El Pampero pode não surpreender como uma notável obra, mas tem méritos no conjunto da produção, tanto pela bela fotografia que explora as belezas naturais, como pelo homogêneo elenco sem estrelismo, além do roteiro enxuto. Um thriller que apresenta uma razoável construção psicológica para um contexto de emoção contida e, de certa maneira, acertada, sem se afastar do ponto de um equilíbrio mesurado para um clímax adequado. Um filme que segue o caminho da inarredável luta pela liberdade, mas sem perder a dignidade até a tentativa de deportação, embora haja dissabores num calvário de tormentos para um retorno inesperado. Uma criação típica do gênero com as ferramentas organizadas para a direção do isolamento de circunstâncias do personagem central em um plano que envolve sua solidão pelos fantasmas misteriosos que assombram um presente de pouca perspectiva. Promete surpresas para o final, tendo no prólogo a cena do gancho que irá materializar um desfecho revelador que contextualiza a amargura, o pessimismo e um sopro de otimismo para os desacreditados.

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