sábado, 28 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (The Square- A Arte da Discórdia)


The Square- A Arte da Discórdia

Vai ser muito difícil surgir um filme melhor que The Square- A Arte da Discórdia nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Merecidamente foi o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano e representará a Suécia no Oscar de 2018. Esta comédia dramática tem a ótima direção do sueco Ruben Östlund, em seu quinto longa-metragem, também responsável pelo eclético e perturbador roteiro. Sua realização anterior, Força Maior (2014), foi vencedora do prêmio de melhor filme da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes daquele ano, retratava a atitude falseada da verdade com efeitos desastrosos para o psicológico do ser humano, diante da gravidade das palavras sem a noção de lógica e equilíbrio, predominando o destempero pela facilidade da verve acusatória de não medir as consequências quase que trágicas no âmbito dos filhos e esposa, embora distante e ausente dos personagens. Ainda que tenha abusado das concessões, poderia ter um aprofundamento maior no tema da depressão, por exemplo, mas abordou com boa análise o sentimento de culpa e o ato pusilânime em relação aos familiares.

Agora o diretor se mete numa polêmica fascinante com The Square, esta extraordinária construção que marca como uma obra vigorosa e desafiadora ao questionar a arte contemporânea por uma crítica corrosiva, justamente num momento delicado em que museus estão fechando por pressão de setores conservadores e moralistas da sociedade, quase beirando a irracionalidade. Proíbe-se exposições para menores de 18 anos, sob a alegação de motivos como a pedofilia, a zoofilia, a sexualidade ousada, os órgãos genitais livres de cobertura, o racismo, e por aí vai. O ninho de vespas foi cutucado e remexido com vara curta, mas não falta contundência deste inquieto diretor de 43 anos. O foco do filme não é proibir e nem retirar o talento dos artistas sérios com seus potenciais reconhecidos, mas desmascarar os falsários que querem promoção através de uma arte empobrecida e sem valor significativo. Por isso, provoca e mexe com os brios de muitos blefes artesanais que são desprovidos de convicções estéticas minimamente definidas. Embora não esteja opinando de maneira definitiva, ao procurar a isenção, afasta-se com elegância da ridicularização por uma forma de simplificação barata, deixando para uma reflexão madura a liberdade de expressão.

O premiado filme tem consistência e um dinamismo num roteiro muito bem arquitetado, que deixa o espectador impactado em muitas cenas e em outra solta o riso fácil para desopilar de uma anterior mais pesada. Vai do clímax para o anticlímax com suavidade e eficiência de quem domina a arte do cinema. Östlund não tem um pensamento estreito que pudesse dar guarida aos defensores da moral e dos bons costumes que levasse para a retaliação ou um discurso vazio contra os artistas na acepção da palavra. Busca com força na dramaticidade apontar para as superficialidades de uma parte minoritária pseudocultural que quer dominar o mercado de maneira brutal. O fio condutor da narrativa está centrado em Christian (Claes Bang), um homem divorciado e um respeitado curador-chefe de um famoso museu de arte em Estocolmo, um pai dedicado às duas filhas menores que o visitam periodicamente, mas que, às vezes, até esquece dos dias agendados, pelo envolvimento com o cotidiano do trabalho, o que não invalida sua condição de abnegado por apoiar ironicamente boas causas. Mas as coisas se complicam quando se aproxima a nova exposição, que empresta o nome ao título do longa, diante da premissa de que a instalação deverá ter transeuntes convidados pelo altruísmo de seus papéis por serem dignos dos seres humanos responsáveis. Um cinismo comprometedor que coloca em xeque o profissionalismo dos organizadores.

A comédia mostra o paradoxo do protagonista que ignora seus próprios ideais ao ter seu celular e sua carteira furtados no meio da rua, quando estava em pleno convencimento de pedestres para compor o cenário que está montando. Ao deixar-se convencer por um de seus assessores, o curador acusa todos os moradores de um prédio popular, o que levará para uma situação caótica pelo inusitado garotinho que se sente injustiçado e quer reverter o fato junto aos seus pais. Ambos sentem-se envergonhados, acusador e acusado entram numa paranoia para um dilema sem precedentes, com um desfecho de purificação da alma e o resgate pelo trauma causado. Outra cena marcante pela eloquência é a de uma agência de relações públicas que cria uma fatídica campanha para promover uma das atrações aguardadas, a obra conceitual perfeita representando a preservação dos direitos e deveres, O Quadrado (referida no título), de uma artista argentina, com um vídeo viralizando nas redes sociais, num retrato mordaz como divulgação antiética. Não pegou bem explodir uma garotinha mendiga de cor branca, a reação na imprensa foi instantânea, com implicações das minorias pelos imigrantes de pele escura espalhados pelas ruas pedindo dinheiro e comida, que acabam sendo substituídos por uma loirinha. Exageros à parte da população e da cobrança midiática, tanto o museu como o curador sofrem retaliações, que levará para a explosão de uma crise que desemboca num desfecho pouco convencional nas relações estremecidas entre o homem e a instituição.

No embalo de uma magnífica trilha sonora que sustenta a realização da arte e seus questionamentos da estética em jogo, assim como no prólogo há a entrevista da jornalista com o curador, sem saber o que fazer da sua bolsa, ironicamente recebe a proposta para deixar num canto que poderá vir a ser um bom material para a exposição. Os montinhos de cascalhos com areia como representação de um fato pitoresco, mas que num incidente desabam alguns deles, causam um certo desconforto e a pergunta que fica: Isto é arte?. Mas o ápice do filme é a sequência devastadora e aterrorizante no sentido psicológico, quando ocorre a apresentação de um artista denominado de o homem-macaco (Dominic West- desempenho elogiável do ator que atua na franquia dos últimos longas Planeta dos Macacos) diante de uma plateia da elite num jantar de gala, estática e amordaçada pelo medo da importunação, que faz uma performance imitando um primata interagindo com o púbico e partindo para uma explícita tentativa de estupro de uma mulher. É o retorno da selvageria com tapas, bofetões, puxões de cabelo, mesa virada, tudo em meio à expectativa da arte e suas inquietações sociais, confundindo-se com a dissimulação de uma sociedade de consumo nos limites atropelados como vísceras expostas. Uma aula de cinema provocativo pela condução da realidade de uma temática polêmica com os subtemas propostos pelo expressivo diretor. Surpreende o desfecho com a materialização de uma crise existencial reveladora sobre a opressão, hipocrisia e os valores éticos. Uma mini obra-prima que contextualiza uma sarcástica crítica para debates que deverão polarizar sobre arte e cultura, causas e efeitos.

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