sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Amante Por Um Dia)


Amante Por Um Dia

A França está com outro importante representante nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o belo e sensível drama familiar intimista Amante Por Um Dia. Após ficar quatro anos afastado das câmeras, Philippe Garrel está de volta na direção, depois do autobiográfico O Ciúme (2013), que realizou com seu filho Louis Garrel sendo o protagonista. Divide o roteiro com Jean-Claude Carrière, Caroline Deruas e Arlette Langmann. O veterano cineasta, discípulo da Nouvelle Vague, que tem em seu currículo o longa de estreia Marie Pour Mémoire, ganhador do Grande Prêmio do Festival du Jeune Cinéma de Hyères, em 1969, também abocanhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1992 com J'Entends Plus la Guitare, prêmio que voltaria a receber por Amantes Constantes, em 2005. Dono de uma filmografia elogiável como A Fronteira da Alvorada (2008) e Um Verão Escaldante (2011), entre tantos outros, além dos já citados.

Os amores com ciúmes como consequência e, em alguns casos, a traição como um ingrediente apimentado prepondera nos temas sempre presentes no cinema francês. O mestre François Truffaut obteve resultados magníficos com Jules e Jim (1961) e A Mulher do Lado (1981), assim como o festejado Claude Chabrol retratou com eficácia em Ciúme- O Inferno do Amor Possessivo (1994). Da Finlândia veio outro ótimo filme sobre a temática O Ciúme Mora ao Lado (2009), dirigido por Mika Kaurismäki. A realização anterior de Garrel manteve a tradição de boas obras sobre a temática recorrente e indispensável para um bom contingente de espectadores fiéis. Neste seu último drama, Amante Por Um Dia segue a trilha e não decepciona seu público devotado pelas inequívocas circunstâncias da alma e do coração. Não falta o amor com ardor e dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de pura beleza como uma poesia dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa amada.

Importante destacar a primorosa fotografia em preto e branco de Renato Berta, num tom melancólico e sem glamorização das relações, dá o equilíbrio exato nesta trama bem urdida da história sobre um pai, Gilles (Éric Caravaca) que namora uma aluna da faculdade, na qual ele dá aula de filosofia, Ariane (Louise Chevillotte), de 23 anos, sem tornar público o relacionamento por motivos éticos, mas que convivem no mesmo teto. Não está previsto que sua filha, Jeanne (Esther Garrel), que tem a mesma idade da futura madrasta, está voltando em definitivo para casa, logo após romper o namoro com Mateo, que parecia ser duradouro. O cineasta disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor em toda sua extensão com os prazeres sexuais e os vínculos afetivos decorrentes. A solidão, o abandono, a iminência da terceira idade e a traição estão presentes nos personagens envolvidos que representam os papéis da vida no dia a dia da ficção e da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã, como simbologia da existência e sua finitude.

O genial Alain Resnais, um dos expoentes da Nouvelle Vague, foi insuperável ao criar uma atmosfera de amor e tristeza de uma existência que torna-se ficcional no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência e rigor no equilíbrio em Amar, Beber e Cantar (2014), um drama de sutilezas numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda, bem como em Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011). Garrel tem uma admiração pelo velho mestre já falecido, por isto se esmera como um bom seguidor na essência do amor, do ciúme e da traição. No filme anterior sua relação é visível e magnífica na trama de um ator de teatro que vive em um modesto apartamento com uma atriz e levam uma vida normal de dois apaixonados, embora com sérias dificuldades financeiras. O rapaz faz de tudo e mais um pouco para ajudá-la a superar a crise e tenta arranjar um emprego para a amada. Encontra tempo para ser um pai presente e manter-se próximo à filha que reside com a mãe, mas é provocada pela garotinha que faz sentir ciúmes uma da outra. Já no drama atual, o ciúme está presente novamente, filha e namorada se aturam, mas uma desconfia da outra, até que ambas irão deixando rastros pelo caminho que levam para uma aleivosia, rompimento, a reconciliação de um outro personagem mergulhado na solidão, além das idas e vindas nas relações conturbadas. Há simplicidade com profundidade nos romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma ao drama.

Não há culpados apontados por Garrel em Amante Por Um Dia. São as escolhas livres e as consequências que os personagens irão assumir. A tentativa de suicídio pela perda de uma grande paixão, as infidelidades contumazes e fugazes no prazer sexual sem vinculação afetiva, como se fossem pessoas normais nas atitudes tomadas, além do desconforto do flagrante e da traição que são contextualizados para uma reflexão sem preconceitos ou moralismos tacanhos pela falsidade ideológica. O cineasta cria imagens realmente fabulosas num preto e branco estristecido propositalmente, como nas sequências que indicam a felicidade sendo engolida pela decepção sombria nos passeios noturnos pelas ruas do bairro, ou na conversa entre pai e filha, e no desfecho simples e fascinante. A dor da perda e da falta de sinceridade a dois, diante da confiança que se esvai de um possível grande amor. Ao desenvolver a narrativa com a reconstrução do microcosmo familiar, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do amor incondicional. É boa a dose de emoção, neste aspecto estão presentes as grandes virtudes deste comovente drama que deixa fluir os traços de uma realidade dolorida e prazerosa.

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