Vazante
O Brasil se faz representar- e muito bem- em coprodução com Portugal na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo com o polêmico drama histórico de época Vazante, sob a direção de Daniela Thomas, em sua primeira incursão sozinha como diretora, que também assina o instigante roteiro em parceria com Beto Amaral. Uma abordagem significativa em uma obra fascinante sobre a escravidão brasileira no século XIX, sob o olhar de uma garota branca, também vítima de uma sociedade austera e ainda completamente ausente no sentido dos direitos iguais entre homens, mulheres e raças. A cineasta começou a carreira no início dos anos 1980, no Teatro Experimental La MaMa, em Nova York, mas sua estreia foi codirigindo Terra Estrangeira (1995, 29ª Mostra) com Walter Salles. A mesma dupla ainda realizou O Primeiro Dia (1999, 23ª Mostra) e Linha de Passe (2008, 37ª Mostra). Em 2009, codirigiu o longa-metragem Insolação, desta vez com Felipe Hirsch, sendo exibido na 33ª Mostra de São Paulo.
A trama retrata a escravidão em Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1821. O protagonista é um homem branco português que retorna para casa, depois de uma longa viagem como um obstinado tropeiro conduzindo uma tropa de escravos. Antonio (Adriano Carvalho) logo recebe a triste notícia da esposa morta com seu filho no trabalho de parto. Amargurado com a inesperada perda, sente-se solitário e isolado em uma fazenda pouco produtiva pelo terreno inóspito. O viúvo casa-se com Beatriz (Luana Nastas), uma menina ingênua que fez uma brincadeira e não imaginava o desenlace. Ela ainda sequer atingiu a puberdade, o que vai deixando frustrado o senhor feudal todo poderoso em seus planos de ter filhos. As idas do marido em viagens longas de expedições para negociar escravos e gado, acabam propiciando uma aproximação da garota com o filho do escravo resistente que dá cabo de sua vida, por não suportar as humilhações ali impostas, principalmente por ver sua mulher tendo que saciar sexualmente os prazeres do patrão. O filho do casal, um adolescente observador que sofre calado com uma dor lancinante de revolta pela situação, tem uma grande ternura e carinho pela jovem esposa de Antônio, criando-se um clima de sedução, amor e traição, que irá causar um epílogo por uma espiral catártica de uma violência desmesurada, com o choro dos recém-nascidos como uma alegoria de novos tempos no horizonte.
O filme que abriu a mostra Panorama no Festival de Berlim, em fevereiro, contextualiza e aponta sem rodeios o machismo ao extremo, com a sonegação da falta de voz à mulher branca ou negra, tanto faz, ambas eram tratadas como escravas, sem direito algum de reivindicação. Há imparcialidade e bom conhecimento de causa pela realizadora para expor a polêmica temática, que lhe rendeu protestos e vaias no último Festival de Brasília, em setembro. Há situações que não agradaram alguns, como o personagem Geremias no papel de um escravo com ascendência sobre os demais, maltratando seus pares com crueldade e um rigor bestial pela desproporção, só vai amealhando ódio e repulsa dos demais. Já o negro rebelde que se nega a ser constantemente exposto em situações humilhantes, que tem um fim pouco heroico, ao entrar em conflito, tanto com Geremias como com o patrão, ambos parecem ser extraídos do filme Django Livre (2012), de Quentin Tarantino. Geremias, pela semelhança com o assessor e bajulador que vende a honra e a dignidade ao patrão, torna-se um severo e intransigente personagem contra a própria raça; já o escravo insurgente segue a trilha do próprio personagem mítico Django, mas ao contrário deste, é o anti-herói.
O contingenciamento da barbárie avizinhada, tanto na relação pedófila entre o marido e a sua nova mulher, ainda que uma menina impúbere, aliados aos fatores pré-estabelecidos machistas e de subordinação da fêmea ao macho no aspecto antropológico ultrapassado, resultando nas sucessões de fatos que darão um clímax áspero pela singularidade das circunstâncias. Já o som dos pássaros substituindo a trilha sonora através de uma fotografia desglamorizada em preto e branco de Inti Briones, por uma linguagem visual e sonora magnífica, que irão criar um realismo fiel àquele lugar hostil e perverso da submissão feminina e da odiosa e repugnante escravidão negra pelos seus senhores de escravos portugueses. O sistemático estupro da escrava pelo senhor branco, além da menina, uma criança que sequer sabe sobre sexualidade, ao ser ofertada pelos pais para um matrimônio absurdo, sem contestação de ninguém, nem da mãe subjugada, em um ambiente de inequívoca veracidade.
Vazante é um estrondoso drama silencioso sobre a história da escravatura brasileira, só quebrado pelos raros diálogos, onde a expressão do olhar, as imagens bucólicas e horrendas e as atitudes pelas expressões corporais estão presentes e dialogam com a plateia de maneira fabulosa. Predominam as cenas, sem necessidade de falas repetitivas de longos e vazios no conteúdo, como são vistos em muitas realizações ineficientes e que não traduzem o melhor do cinema como essência. Num tom seco, emoção contida e música lacrimejante ausente, Daniela dá brilho pela profundidade da abordagem ao mostrar de forma crua os escravos viajando presos por grossas correntes. Não apresenta explicitamente a exploração das sevícias, da tortura e do sadismo que eram praticados pelos escravocratas contra os negros chicoteados e esfolados de forma exposta visceralmente. Opta por uma narrativa densa. Sugere a construção do império pelo trabalho escravo de uma perversa relação sustentada pela força e a violência de quem detém a economia e o poder financeiro. Nada é mais execrável e violento do que o horror da escravidão de uma raça depauperada brutalmente como retrata esta primorosa obra com espantosa criatividade por um cinema abundante e verdadeiro na sua estrutura para o alcance do conteúdo profundo.
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