segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Visages, Villages)


Visages, Villages

Vem da França outro interessante filme na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Visages, Villages, com direção e roteiro da dupla Agnès Varda e JR. Eles têm coisas em comum: a admiração apaixonante por imagens e o interesse pelos outros, além do questionamento sobre os lugares onde são mostradas as fotografias e a maneira como são compartilhadas e expostas, com entrevistas simples e soltas de personagens comuns do povo e sem voz, em especial as mulheres pelo perfil feminista da diretora. JR, de apenas 34 anos, é famoso por criar galerias e murais fotográficos ao ar livre, uma paixão deste artista visual brilhante. Quando os dois se conheceram, em 2015, logo deu o estalo, foram trabalhar juntos e realizar um filme no interior da França, bem longe das grandes cidades. Montaram um roteiro com um plano pré-concebido e até certo ponto aleatório e discutem o espaço de fruição da arte. Logo partiram rumo ao encontro de pessoas que são convidadas para segui-las em sua viagem no caminhão para realizar este comovente documentário road movie, que venceu o Olho de Ouro da categoria no Festival de Cannes.

A cineasta belga, naturalizada francesa, de 89 anos, que parece uma jovem pela energia abundante, é a grande homenageada deste ano na Mostra de São Paulo, em uma justa celebração deste ícone do feminismo nas telas, que teve As Praias de Agnès (2008), seu último filme e o segundo longa autobiográfico, ganhador do prêmio César de melhor documentário, com uma narrativa sensível e poética num passeio pelas praias que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida. Além de lançar um olhar breve de lembranças do passado, não deixa de mostrar seu presente e a alegria de dizer “estou viva, e eu me lembro” e na mais bela frase do filme que resumia seu amor imensurável pela sétima arte, assevera: “o cinema é minha casa”. Prestou um belo tributo ao seu marido morto de Aids, em outubro de 1990, o inesquecível Jacques Demy, autor de obras como Lola, A Flor Proibida (1961), Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) com Catherine Deneuve e Duas Garotas Românticas (1967). Demy foi seu grande e único amor, mas quando fala dele embarga a voz, bem como ao prestar a homenagem com pétalas de flores e afirmar que é a pessoa que mais lhe faz falta na convivência diária, numa cena emocionante.

Varda é uma realizadora extraordinária e sua participação junto ao marido no antológico movimento Nouvelle Vague é uma contribuição valiosa e histórica para o cinema, ao lado de monstros sagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Marguerite Duras, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnais. Tem uma filmografia marcante e recheada de grandes filmes como Cleo das 5 às 7 (1962), As Duas Faces da Felicidade (1965), Teto Sem Lei (1985) e Os Catadores e Eu (2000). A diretora autoral e o muralista colocam na tela um mosaico do presente e o futuro, onde aparecem intercalados personagens com seus gatinhos de estimação; cabras com o leite sendo ordenhado manualmente para se evitar o barulho das máquinas; a voz sendo dada para três mulheres de estivadores colocarem seus pontos de vistas e ainda posarem em murais nos contêineres no local de trabalho dos maridos; a visita ao minúsculo cemitério para reverenciar Henri Cartier-Bresson, o pai da fotografia; mas há ainda o frustrante desencontro com o colega Godard, que grosseiramente a deixou esperando e não apareceu para um reencontro tão desejado, mas pouco inteligente de parte dele. Não faltou uma merecida alfinetada no veterano diretor.

Visages, Villages é uma verdadeira jornada itinerante pelas estradas em uma busca no paraíso de histórias contadas pelos outros para enriquecer com simplicidade, sutileza e sensibilidade o universo rico do cinema e seu fascínio inesgotável. Uma aula de vitalidade desta octogenária jovial acoplada com o gosto de viver intensamente, deixa sua zona de conforto em casa para se jogar numa aventura repleta de reminiscências e otimismo de uma realizadora fabulosa na companhia do talentoso fotógrafo e muralista, para dar vida a este documentário instigante desta “baixinha fofa” que mantém a alegria de viver como uma menina serelepe e altaneira. Atenta ao mundo e suas modificações e inovações, nem parece aquela garota que viu bombas explodirem da 2ª. Guerra Mundial, ao deixar Ixelles (sua terra natal), próximo de Bruxelas, e ir para a França buscar agasalho; presenciou crianças judias serem levadas para os campos de extermínio, além de outras adversidades como a prematura morte do marido, como registrou no filme anterior.

Uma vida dedicada exclusivamente ao cinema como elementos de amor e paixão pela vida e pelo que faz, que se fundem como uma simbiose com JR, neste quase ensaio em forma de apresentação dos resultados dos trabalhos realizados em torno de uma temática eclética, que desfila como a busca pelo novo e o interesse genuíno pelo ser humano, embora seja uma artista realizada com sua produção, mas que não pode parar, pois tem muito ainda para dar. Um filme delicioso e leve sobre a essência da existência, seus ensinamentos reflexivos e emoções com tiradas incríveis como: “Vai ver se eu estou lá na esquina”. Eis uma boa obra que contribui neste registro magnífico sobre a arte da criação cinematográfica com simplicidade e amor dos eficazes moradores contando suas histórias e situações típicas, registrando tudo aquilo que achavam interessante sem ter um personagem central, captando sons e as belas imagens da região com seus locais pitorescos que fundamentalmente giram em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares com as idiossincrasias regionais. Um cinema da pura essência.

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