terça-feira, 24 de outubro de 2017
Mostra de Cinema São Paulo (Zama)
Zama
Um outro filme que havia uma grande expectativa nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo é o épico Zama, quarto longa-metragem da argentina Lucrecia Martel, que também é a responsável pelo roteiro, numa coprodução da Argentina com o Brasil, Espanha, França, México, EUA, Holanda e Portugal. Fez sua estreia como diretora na obra-prima O Pântano (2001), ganhador do prêmio Alfred Bauer no Festival de Berlim, depois filmou A Menina Santa (2004), que recebeu menção honrosa na 28ª. Mostra de São Paulo, e A Mulher Sem Cabeça (2008) foi sua derradeira realização. Agora, quase dez anos inativa, envereda em seu novo longa para uma abordagem sobre a história de um homem amordaçado por ele mesmo num contexto ambientado em uma região pantanosa, onde hoje está fincado o Paraguai. O cenário é o final do século XVIII, na América do Sul, lugar no qual os colonizadores brancos escravizavam os negros e os indígenas eram deixados de lado, mas lutavam pelos seus direitos numa batalha inglória e desproporcional pelas suas terras. Eram guerras pelas independências contra a Espanha, mas que surtiria discutíveis resultados bem depois aos países latinos independentes.
Um relato histórico baseado no romance homônimo de Antonio di Benedetto, publicado em 1956, no qual o protagonista dom Diego de Zama (Daniel Gimenez Cacho), um funcionário da Coroa Espanhola com a função de assessor jurídico, aguarda ansiosamente por uma carta do rei concedendo-lhe a transferência do lugar onde está (Assunção) para um outro melhor e menos estagnado, sem a insalubridade ali existente, como se percebe nas casas caindo aos pedaços com requintes de mofadas, os mosquitos infestando os ambientes e o calor insuportável, apenas atenuado pelos negros que abanam os bancos como se fossem ventiladores manuais. Enquanto isto, na sua espera em vão, vai tocando suas tarefas de submeter os demais integrantes da expedição da colonização aos seus conhecimentos. Para garantir que nada irá atrapalhar sua mudança, ele é forçado a aceitar de forma submissa qualquer tarefa dada pelos diversos governadores que chegam ali por algum tempo e logo vão embora sem a menor cerimônia. Diante da série de entraves e dificuldades de comunicação com a Capital, a cobiçada transferência de retorno é adiada com frequência e sua paciência vai se esgotando.
No desenrolar da trama, a cineasta vai apimentando as relações do personagem-título com as autoridades coloniais que se deterioram cada vez mais. Acaba por entrar em choque com uma nobre sedutora e devassa (Lola Dueñas), seus conflitos ficam acirrados até com a população de índios e escravos negros. Não à toa esbofeteia uma nativa logo na sua chegada naquele lugarejo inóspito, por uma simples brincadeira da mulher. É o recado direto dos colonizadores aos colonizados. Os anos passam e a mensagem do rei nunca chega. Quando percebe que isso jamais acontecerá, ele já cansado da situação kafkiana se junta a um grupo de soldados num comboio militar que procura por um bandido célebre, Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele), que aterroriza a região, quase como uma figura mítica que morrerá muitas vezes e reaparecerá em outras tantas. Sempre surge alguém que jura ter liquidado o bandoleiro, chegando a exibir suas orelhas como um troféu cobiçado, porém sempre fica a dúvida. Na metade da narrativa, vê-se o personagem central liderar uma caçada humana, mergulhado na natureza e exposto a elementos e situações típicas que não mais controla. Deixa para trás o filho concebido com uma índia e mergulha numa febril e dolorosa missão que terá pela frente um confronto espetacular com tribos indígenas à noite, numa imersão pela floresta com o silêncio se contrapondo com o barulho da cavalaria e os gritos dos índios como silvos noturnos, numa cena inesquecível pela brilhante fotografia captada nas lentes do fotógrafo Rui Poças.
O filme mostra as mentiras da colonização e revela as trambicagens para obter-se resultados satisfatórios. Nada parece ser o que realmente parece como verdadeiro. O bandido assassinado e decapitado não passa de uma farsa teatral, já as pedras preciosas são cristais sem valor de mercado pela pobreza da qualidade. Zana é um personagem ambíguo por ser contraditório, rude e frágil, forte e frouxo, um anti-herói na essência, que parece não se completar como o que pretende realmente. A complexidade da situação colonial com a tentativa de transpor para a bacia do rio da Prata é um esforço recompensável da diretora neste terreno pantanoso que as cenas vão sendo retratadas para o espectador atento, embora de maneira um pouco cansativa, quase à exaustão, mas com bons méritos de uma trilha digna de um filme desta grandeza, considerando que representará a Argentina no Oscar estrangeiro do próximo ano.
Tanto nas realizações anteriores de Martel, como em Zama, as cenas são construídas de forma sensorial e com uma narrativa de intensidade baixa. As imagens são mais reveladoras e eloquentes que os diálogos, deixando o lado perceptivo da imaginação falar mais alto como forma de expressão. Não é daqueles filmes que primam pela descrição bem comum em ficções históricas com o viés épico da epopeia de heroísmos marcantes que entram para o rol dos afortunados. O rigor da abordagem pode variar quando se trata de colonização com vítimas e algozes para uma estreita relação das forças da natureza interagir com as dos seres humanos travestidos de homens desbravadores a qualquer preço.
Para alguns setores da crítica o filme se aproxima de um universo de filmes de jornadas delirantes e transcendentais, tais como: do tailandês Apichatpong Weerasethakul no polêmico filme Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), passando pelo Francis Ford Coppola em Apocalypse Now (1979), e por Werner Herzog nos notáveis Aguirre, A Cólera dos Deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982). São os exageros pelo deslumbramento ou graças à bondade que parece estar presente em alguns críticos mais apressados que se deixam trair pela emoção momentânea. Zama cumpre com boa importância seu papel de abordar uma colonização vista por muitos como glamorizada, embora haja abjetas sujeiras empurradas para o limbo, que não são aprofundadas com rigor histórico imparcial. Em produções menores faltaram questionamentos de cobranças éticas de situações escabrosas de nossos antepassados. Méritos para a cineasta que tira o véu da impunidade para um bom debate.
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