sexta-feira, 22 de abril de 2016

Truman


Relações de Amizades

O cineasta catalão Cesc Gay é conhecido no Brasil pela instigante comédia agridoce O Que os Homens Falam (2012), através de um deslumbrante cenário das tomadas externas de Barcelona, num tom cômico recheado de ironia, mas sem perder o intimismo profundo, ao abordar os relatos sinceros de oito homens na crise da meia-idade, todos na faixa de 40 a 60 anos. Satirizava a existência do chamado sexo forte, ao apresentar suas dificuldades contemporâneas, mas que reflete sobre as fraquezas e os novos tempos do universo machista em extinção. Ricardo Darín e Javier Cámara foram destaques no filme anterior e novamente fazem parceria com o diretor espanhol, desta vez em Truman, uma coprodução entre Espanha e Argentina, numa abordagem sensível sobre dois amigos de infância separados há anos, que se encontram por um motivo especial: a iminência da morte de um deles por um câncer terminal.

Premiado no Festival e Goya, o mais importante do cinema hispano-americano, Truman obteve as láureas de melhor filme, direção, ator (Darín), ator coadjuvante (Cámara) e roteiro original. Também teve reconhecido o trabalho dos dois atores com premiação no Festival de San Sebastián. O diretor e Tomas Aragay assinaram o roteiro linear, porém perturbador de uma história com contornos dramáticos pela delicadeza da temática e suas armadilhas, mas que jamais cai no melodrama corriqueiro de outras realizações similares. Ganha força narrativa por Darín, em atuação estupenda como Julián, um argentino radicado em Madrid que atua em teatro e recebe a visita de Tomás, pelo excelente Cámara, no papel de um amigo de infância que mora no Canadá, deixando lá esposa e filhos para tentar dissuadi-lo da decisão de interromper o tratamento quimioterápico. Para isto conta com a ajuda da prima do convalescente, Paula (Dolores Fonzi), um amor antigo da juventude. A alegação do enfermo é de que a metástase invadiu outros órgãos de seu corpo para “fazer turismo”, de que nada valeria o esforço para ganhar mais alguns dias de sobrevida, pois dá mais importância para um final com uma qualidade de vida sem os estragos dos efeitos colaterais.

Cesc Gay sabe dar o ponto certo neste sombrio drama com irônico tom cômico, ao lançar para o debate como subtema uma espécie de eutanásia voluntária. O longa invoca uma notável reflexão sobre a morte, que apresenta um desfecho da existência que dilacera dentro de um contexto de grande amizade com seu velhinho fiel cão da raça Bulmastife, Truman, que empresta o nome ao título (na vida real tinha o nome de Troilo e faleceu em meados de 2015). Julián parece estar mais preocupado com o futuro do animal do que consigo mesmo. Para isto, os dois inseparáveis amigos passam quatro dias juntos, lembram e compartilham momentos emocionantes e cômicos dos velhos tempos e a grande vinculação que se manteve com os anos, um fortíssimo elo de franqueza daquela amizade masculina ao discutirem suas fragilidades, assim como o diretor fizera na realização anterior. Não é somente o reencontro do último adeus, ali está inserido o destino a ser dado ao inseparável cachorro grandalhão já alquebrado pelo tempo, mas a intuição da separação iminente aguardada da forte relação com seu dono. É dolorido ver uma pessoa pensando no fim, embora esteja ainda com as rédeas nas mãos para retirar os véus dos bons costumes, tentando dar um tapa na cara da morte no confronto com a vida, diante das emoções existenciais sobre o progressivo epílogo do ser humano.

O cineasta aduz com clareza que seu longa “é um olhar sobre a forma como reagimos ao inesperado, à dor e ao desconhecido. E é também um filme sobre a amizade”. A solidariedade se faz presente na realização, como da ex-esposa e do filho que mora em Amsterdã para estudos. O reencontro com o rapaz e sua namorada em um bar para uma refeição é comovente e significativo para ambos. Ninguém quer tocar no assunto pela dificuldade para encontrar as palavras adequadas para aquele momento único. Ao fugirem do assunto, que será revelado depois de forma circunstancial, fica evidente o quanto é delicado e terrível tratar com lucidez o tabu do perecimento. É oferecido com equilíbrio uma experiência tocante ao espectador, porém sem perder a graça dos bons momentos que são proporcionados durante a trajetória do nascimento até o crepúsculo, sempre bem acompanhado da bela trilha sonora, do cenário fascinante da fotografia eficiente de Madrid e Amsterdã.

Diante da realidade existencial e o seu sentido com as inerentes dificuldades, como a abordagem da morte, amizade e solidariedade, mas mostrada com um elegante toque de classe, graça e ternura, o drama de tintas cômicas mescladas com o desfecho inusitado, lança pitadas de soluções para uma abordagem vigorosa sobre um tema mórbido, mas necessário e indispensável para reflexão no cinema. Uma construção narrativa soberba, com clímax e anticlímax certeiros para um mergulho nos subterfúgios da vida, com diálogos e olhares inoculadores até a alma para extrair da dor e da angústia, alguns subsídios tênues da corrosão do tempo implacável. Truman não deixa dúvidas do ponto nevrálgico pretendido, ao apontar para o sentimento da melancólica perda inevitável. Eis um magnífico retrato do fenecimento numa atmosfera densa, mas humana pela solidariedade acima de tudo.

2 comentários:

eneida serrano disse...

Que bom esse olhar sobre o filme. Eu estava hesitante, agora vou correndo assistir. Obrigada, já gostei.

Roni Figueiró disse...

Imperdível. Um filmaço para pessoas que gostam de um bom cinema de reflexão.