sexta-feira, 2 de outubro de 2009

À Deriva



Fragmentos de um Casamento

Uma relação fragmentada como cacos de vidro é o núcleo principal deste ótimo À Deriva, que dá mostra do ocaso pelas fragilidade já na primeira cena. Mathias, interpretado pelo insosso ator francês Vincet Cassel, trai Clarice (Debora Bloch), ao receptar o bife, na ânsia de proteger a filha. Surge a primeira metáfora do fim do casamento. Mathias é um escritor com dificuldades de terminar e comercializar seu romance, conta a história de uma mulher que trai o marido com um jovem 10 anos mais jovem.

O diretor Heitor Dhalia tem na sutileza e na imprevisibilidade como marca de suas qualidades, como já o fizera em seus filmes anteriores Nina (2004) e O Cheiro do Ralo (2006). Há uma homenagem a Ingmar Bergman, principalmente pela obra-prima do diretor sueco, Cenas de Um Casamento. Sua influência é notória e seu gosto bem apurado, pois buscou no mestre da alma suas inspiração maior. Há referência também a outro artesão das palavras e das cenas envolventes Robert Altman por Cerimônia de Casamento (1978). Um discípulo com todo vigor e merece e atinge neste filme À Deriva toda sua supremacia, arrojo e despojamento de um cineasta voltado para a profundidade, refutando obras de apelo fácil.

A película retrata a dor da separação e o sofrimento dos três filhos, em especial Felipa (Laura Neiva), uma adolescente de 14 anos -ao melhor estilo da inesquecível ninfeta Lolita, consagrada pelo festejado escritor russo Vladimir Nabokov- que começa a sentir o desabrochar de sua sexualidade, bem como os problemas emocionais aflorarem com o conflito de relacionamento dos pais. Procura a culpa no pai que se relaciona com a exuberante Ângela (Camilla Belle), não entendendo o que está se passando, do porquê das aventuras fora do casamento. Não há culpados, pois a fidelidade entre pai e mãe se esgotou, fundindo-se em perda irreparável. Resta uma união sobre areia movediça num pântano escuro e em desequilíbrio com a natureza, que está se diluindo e a finitude é iminente. Um microcosmo de uma crise de integrantes de uma família que está vivendo seus últimos dias sob o mesmo teto, com seus enigmas e retratos de sentimentos na tenaz busca de soluções.

Na paradisíaca praia de Búzios está o casal em atrito, na busca de férias e a solução para o impasse, entre os rochedos do mar que formam um belo cenário, que encanta pela sua plasticidade. No alto do morro está fincado um bangalô onde mora Ângela. Ali os fantasmas de Felipa irão se materializar e a conduzirá para as descobertas e revelações do passado em sintonia com as luzes do futuro se produzirão de forma encantadora, embora com inafastável ressentimento.

O longa traz uma reflexão da atmosfera de uma relacionamento desgastado pelo tempo, conduzindo para a abordagem de valores e transtornos invocados por Camila, ao afirmar que Mathias é uma pessoa complicada e complexa como seus personagens, prenunciam e indicam para o rompimento formal e definitivo de uma sociedade conjugal que já não mais existe. O final de pai e filha juntos mergulhando nas águas turvas de um mar revolto, com a finalidade metafórica da purificação, vai ao encontro da reconstrução familiar. Antes, já houvera o acidente do carro com a morte alegórica do cavalo, vem revelar o fim e o início de uma nova união, com a guinada implícita para a vertente de vidas reconstruídas. Os estilhaços da dor entranhados na alma e no coração de Felipa começam a se dissipar para a redenção em consonância com a libertação das amarras envoltas aos pais.

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