domingo, 7 de fevereiro de 2016

O Filho de Saul


Porões do Holocausto

Falado em oito línguas, vem da Hungria o favorito ao Oscar estrangeiro deste ano, O Filho de Saul, com direção do jovem László Nemes, de 38 anos. Uma abordagem seca sobre os porões ainda não vistos do Holocausto, focando um integrante do Sonderkommando, uma espécie de brigada de judeus encarregada de limpar as câmaras de gás e carbonizar os cadáveres, provavelmente sensibilizará e calará fundo os velhinhos da Academia de Hollywood. Já ganhou o Globo de Ouro e os prêmios de melhor filme da crítica e do júri no Festival e Cannes de 2015. Integrou a 39ª Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado, perdeu o prêmio da crítica para Torneranno I Prati, traduzido para Os Campos Voltarão (2014), de Ermanno Olmi.

O visceral e controvertido drama tem como cenário o ano de 1944, nos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial. Retrata uma solução adotada como prática abjeta pelo Nazismo, como resolver e limpar os milhares de mortos advindos dos extermínios em massa. Como se fosse uma fábrica que tem de manter as máquinas funcionando a todo vapor, era necessário estar sempre aptas as câmaras de gás para receber mais e mais vítimas. Os corpos deveriam ter um destino, entre eles as valas comuns que já não davam mais resultado prático, pois não poderiam ser simplesmente empilhados como numa grande lixeira humana. O horror estava impregnado nas entranhas de todos, vítimas e algozes faziam parte da terrível paisagem putrefata propiciada por Adolf Hitler. Por isto a trama cutuca como pode o espectador sentado comodamente.

Géza Röhrig que não é ator, mas um poeta húngaro que mora em Nova Iorque, interpreta Saul Ausländer, um judeu obrigado a trabalhar para os nazistas, sendo um dos responsáveis em limpar as câmaras de gás, após dezenas de outros judeus serem trucidados. Em meio à tensão do momento e as dificuldades do cotidiano hostil naquele ambiente sombrio e tétrico para realizar suas repugnantes tarefas, reconhece entre os mortos o corpo do suposto filho ainda sobrevivente, mas sem sorte pela determinação de um frio oficial alemão, razão pela qual decide fazer um enterro digno com o auxílio de um religioso. Vira uma obsessão, chega a colocar em risco a vida dos companheiros. Nemes tenta fugir da trivialidade, embora seja discutível como uma realização sugestiva sem mostrar a essência, como afirma no jornal Estado e São Paulo: “Nosso filme não pode ser bonito nem sedutor. E também não quero que seja um filme de gênero, de horror”. Tem por objetivo fugir da banalidade do mal com imagens sensacionalistas, por isto busca uma abordagem voltada para os efeitos da dignidade, da moral, da ética e da reflexão sobre a barbárie nazista. É marcante a cena em que o diretor utiliza a elipse pontual quando as pessoas se debatem dentro dos chuveiros químicos coletivos para tomar o banho letal.

O Filho de Saul esmiúça um momento único na vida do protagonista, quando jura ter identificado o filho. Sua vida é complicada, tendo em vista ser uma peça da engrenagem maquiavélica vigente de extermínio dos judeus. O fato de pertencer à respectiva brigada, em que poucos sobreviviam, com indispensáveis regalias, tais como comida, direito de circulação pelo campo e outras benesses que lhe poupam a vida, embora os integrantes dos Sonderkommandos também eliminassem alguns vestígios comprometedores. A trama coloca o personagem central num delírio, em busca de seu objetivo principal, ou seja, achar um rabino para realizar o ritual no enterro do menino que deveria ir para as salas de autópsia. A cruzada empregada por Saul é entediante, quase que enfadonha, ao descobrir formas de resistência e sobrevivência no complexo construído com câmaras de gás, chuveiros químicos, valas abertas a céu aberto e fornos de cremação.

Dentro de um bom equilíbrio, através de uma história contada com uma aterrorizante leveza contraditória, embrutecida por um panorama deixado do horror pelos destroços humanos distorcidos propositalmente pela lente. Evidente que há a perseguição implacável aos sionistas, diante das feridas abertas de difícil cicatrização, permeando a selvageria intercalada por momentos doloridos, faz deste drama um registro forte, sem cair no maniqueísmo ou na mesmice de alguns filmes didáticos e pouco eficientes com pessoas amontoadas dentro de trens rumo à morte. Um filme de imagens poderosas com força de grande expressividade, como na fuga tresloucada pelo rio com suas profundas correntezas, os subterrâneos das atrocidades. Ou pelo rosto e o olhar marcados pela distância de Saul e seus gestos de perplexidades até a surpresa do desfecho. Mas falta a contundência de Phoenix (2014), de Christian Petzold, sobre a história da sobrevivente judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração, durante o período da II Guerra Mundial. Ou em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, no registro magnífico de uma defesa intransigente para uma verdade não tão absoluta passada pelas gerações, na qual as vítimas são todas aquelas que não participaram diretamente, faz o espectador ter uma visão menos dualista, ao deixar fluir a equidistância da imparcialidade para elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da realidade.

Há inegáveis méritos para o cineasta ao mostrar o local das mortes massificadas pelo escabroso genocídio como um bunker, que poderia dar um sentido claustrofóbico imaginado no roteiro, mas o resultado é pouco eficaz. Não há corpos em evidência em O Filho de Saul, apenas surgem imagens distorcidas pela câmara que fecha e cola no protagonista em sua trajetória incansável e obstinada pelo seu intento, acompanhado de sons e ruídos, mesclados com vozes oriundas de um além próximo. Ao lançar mão desta técnica o realizador assevera: “ser sua companheira nessa verdadeira travessia do inferno”, tenta criar uma estética diferente como de Steven Spielberg em A Lista de Schindler (1993), em que a câmera entrava no hermético recinto gaseificado. O diretor húngaro veta tal situação para Saul, como também priva o espectador do realismo macabro. Ao se posicionar por algumas regras ditas como éticas, vai ao encontro de uma censura prévia, como alguns críticos revelam e bradam com certa razão. Ou seja, o que se pode ver no cinema e o que mostrar para o público. Seria uma subestimação da inteligência da plateia? Talvez sim, talvez não. Tudo depende do ponto de vista moral e ético. Quanto à estética utilizada, não há inovação, pouca originalidade num tema recorrente, embora perturbador sobre todos os aspectos. Um filme interessante, longe da obra-prima diagnosticada por alguns apressados críticos, mas que faz brotar o instinto de busca num alucinante mergulho de um passado brutal.

Nenhum comentário: