sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A Ovelha Negra


Dolorosa Reaproximação

Embora não tenha sido selecionado para o Oscar, a Islândia escolheu A Ovelha Negra para representar o país na premiação. O filme é dirigido por Grímur Hákonarson e já recebeu prêmio na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes 2015. Surpreendeu positivamente na última Mostra de Cinema de São Paulo. Retrata de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Mas surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores de ovinos.

A iminente falência do sustento familiar tem como reflexão literal do desenrolar da trama o modo de sobrevivência de um povo, que poderia sugerir e remeter para uma alegoria do país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto. No território islandês, a população de ovelhas é maior que a dos seres humanos. Os animais têm uma importância relevante e inestimável para a sobrevivência nas grandes fazendas destinadas a criá-los. O enredo coloca frente a frente os dois irmãos protagonistas magnificamente interpretados por Sigurður Sigurjónsson (Gummi) e Theodór Júlíusson (Kiddi). Depois de dezenas de anos conflitados, um dia após ser derrotado num concurso anual do melhor cordeiro, Gummi investiga o animal vencedor e desconfia que ele tenha scrapie, uma doença dizimadora dos ovinos, similar à doença da vaca louca nos bovinos.

Um filme que proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes daqueles habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida. Diante disto, o cineasta faz com habilidade o gancho da matança dos rebanhos nos campos das redondezas para evitar que a contaminação se alastre, comandadas por equipes de vigilância do governo. É uma verdadeira tragédia para todos. Diante deste fato relevante no lugarejo, o roteiro se encaminha para lançar um olhar de compaixão e reaproximação entre os dois inimigos mortais. Porém, a reviravolta na envolvente história terá a resistência justamente do causador da discórdia acirrada após o novo episódio, que tentará proteger algumas unidades para sua sobrevivência em consonância com a veneração que os donos nutrem pelas ovelhas.

O drama mostra o impacto que tal perda significa para uma comunidade dependente da essencial criação, como forma de sustento e um meio de vida socioeconômico único na região. A crise se agrava com a chegada do inverno, o que torna o ambiente mais inóspito e impróprio para aventuras financeiras. A narrativa capta com sensibilidade a solidão dos irmãos de vínculos rompidos por uma questiúncula do passado, em que o pai deixou registradas todas as terras em nome de um só filho, talvez por ser mais confiável e seguidor da saga familiar, enquanto que o outro morava como se fosse de favor. Para isto a fotografia esplendorosa de imagens majestosas captadas é fator fundamental para passar ao espectador o clímax tenso e hostil que estão presentes entre os dois, ganhando força na aspereza das suas vidas sem emoções, em que nem as empregadas resistem por muito tempo, logo pedem demissão, como afirma um deles.

Eis uma realização sutil num panorama de brigas surdas permanentes pelos personagens centrais. Num ritmo lento, o cineasta faz um belo drama silencioso, terno, humano, com dignidade de uma narrativa que cresce com a evolução do enredo para o desfecho redentor e significativo como o retrato de uma perda por décadas, decorrente de picuinhas e baboseiras sem significados maiores. O grande amor fraterno descoberto no triste, sofrido e estupendo epílogo, em que a singeleza de um gesto de proteção e o calor humano que explode naquela tempestade de uma nevasca violenta por uma estética de filmar singular, embora por uma produção considerada singela, como disse o diretor ao jornal O Estado de S. Paulo: “Sempre tivemos cinema na Islândia, uma lei de financiamento que não mudou. O que mudou talvez seja a mentalidade. Há uma nova geração de diretores, a qual pertenço. Queremos fazer nossos filmes com sinceridade e simplicidade. São filmes baratos. Estamos tendo a sorte de ganhar projeção em festivais”.

A Ovelha Negra tem elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade, ternura e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia de pastores de ovelhas. Ali encontraremos a ruptura e a reaproximação forçada para uma reintegração da união familiar abalada. Um cenário que privilegia o cão em seu papel decisivo para os irmãos manterem algum laço restante, além do trator como um cúmplice para salvar um deles, sem que o outro mantivesse o contato físico. Não é um relato social aprofundado do extermínio voluntário, mas a relação afetiva inevitavelmente que se perdeu no tempo, ou a autoestima de se produzir para esperar sozinho e silencioso a grande noite de Natal, como na comovente cena que simboliza o estado de espírito de uma situação singular pelos desmandos e irracionalidades da intransigência. Mas sobra combustível para uma energia humana diante da perda iminente de suas referências, como o vínculo familiar, até então de prostração, demonstra entusiasmo e sentimento de carinho entre os e reaproximados pela dor imensa, ali ficarão esquecidos pelo tempo e pelas derrotas inevitáveis neste estupendo drama com tintas fortes de tragicidade, que perturba o mais distraído dos espectadores, mesmo para um desfecho em aberto.

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