Dolorosa Reaproximação
Embora não tenha sido selecionado para o Oscar, a Islândia
escolheu A Ovelha Negra para
representar o país na premiação. O filme é dirigido por Grímur Hákonarson e já
recebeu prêmio na mostra Un Certain
Regard no Festival de Cannes 2015. Surpreendeu positivamente na última
Mostra de Cinema de São Paulo. Retrata de forma comovente a relação estremecida
de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se
por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um
cachorro, uma espécie de pombo-correio. Mas surge uma violenta determinação do
governo para a eliminação de todo o rebanho da família, após ser constatada uma
doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores
de ovinos.
A iminente falência do sustento familiar tem como reflexão literal
do desenrolar da trama o modo de sobrevivência de um povo, que poderia sugerir
e remeter para uma alegoria do país decorrente da avassaladora crise financeira
mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um
rastro de desemprego como poucas vezes visto. No território islandês, a
população de ovelhas é maior que a dos seres humanos. Os animais têm uma
importância relevante e inestimável para a sobrevivência nas grandes fazendas
destinadas a criá-los. O enredo coloca frente a frente os dois irmãos protagonistas
magnificamente interpretados por Sigurður Sigurjónsson (Gummi) e Theodór
Júlíusson (Kiddi). Depois de dezenas de anos conflitados, um dia após ser
derrotado num concurso anual do melhor cordeiro, Gummi investiga o animal
vencedor e desconfia que ele tenha scrapie,
uma doença dizimadora dos ovinos, similar à doença da vaca louca nos bovinos.
O drama mostra o impacto que tal perda significa para uma comunidade
dependente da essencial criação, como forma de sustento e um meio de vida
socioeconômico único na região. A crise se agrava com a chegada do inverno, o
que torna o ambiente mais inóspito e impróprio para aventuras financeiras. A
narrativa capta com sensibilidade a solidão dos irmãos de vínculos rompidos por
uma questiúncula do passado, em que o pai deixou registradas todas as terras em
nome de um só filho, talvez por ser mais confiável e seguidor da saga familiar,
enquanto que o outro morava como se fosse de favor. Para isto a fotografia
esplendorosa de imagens majestosas captadas é fator fundamental para passar ao
espectador o clímax tenso e hostil que estão presentes entre os dois, ganhando
força na aspereza das suas vidas sem emoções, em que nem as empregadas resistem
por muito tempo, logo pedem demissão, como afirma um deles.
Eis uma realização sutil num panorama de brigas surdas permanentes
pelos personagens centrais. Num ritmo lento, o cineasta faz um belo drama
silencioso, terno, humano, com dignidade de uma narrativa que cresce com a
evolução do enredo para o desfecho redentor e significativo como o retrato de
uma perda por décadas, decorrente de picuinhas e baboseiras sem significados
maiores. O grande amor fraterno descoberto no triste, sofrido e estupendo
epílogo, em que a singeleza de um gesto de proteção e o calor humano que
explode naquela tempestade de uma nevasca violenta por uma estética de filmar
singular, embora por uma produção considerada singela, como disse o diretor ao
jornal O Estado de S. Paulo: “Sempre tivemos cinema na Islândia, uma lei de
financiamento que não mudou. O que mudou talvez seja a mentalidade. Há uma nova
geração de diretores, a qual pertenço. Queremos fazer nossos filmes com
sinceridade e simplicidade. São filmes baratos. Estamos tendo a sorte de ganhar
projeção em festivais”.
A Ovelha Negra tem
elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade,
ternura e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia de pastores de
ovelhas. Ali encontraremos a ruptura e a reaproximação forçada para uma
reintegração da união familiar abalada. Um cenário que privilegia o cão em
seu papel decisivo para os irmãos manterem algum laço restante, além do trator
como um cúmplice para salvar um deles, sem que o outro mantivesse o contato
físico. Não é um relato social aprofundado do extermínio voluntário, mas a
relação afetiva inevitavelmente que se perdeu no tempo, ou a autoestima de se
produzir para esperar sozinho e silencioso a grande noite de Natal, como na
comovente cena que simboliza o estado de espírito de uma situação singular
pelos desmandos e irracionalidades da intransigência. Mas sobra combustível
para uma energia humana diante da perda iminente de suas referências, como o
vínculo familiar, até então de prostração, demonstra entusiasmo e sentimento de
carinho entre os e reaproximados pela dor imensa, ali ficarão esquecidos pelo
tempo e pelas derrotas inevitáveis neste estupendo drama com tintas fortes de
tragicidade, que perturba o mais distraído dos espectadores, mesmo para um
desfecho em aberto.
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