quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Tia Virgínia

As Irmãs

O longa-metragem de estreia do roteirista e diretor goiano Fabio Meira foi As Duas Irenes (2017), que abocanhou quatro prêmios no Festival de Gramado daquele ano: roteiro, ator coadjuvante, direção de arte e melhor filme da crítica. Agora, o cineasta nos brinda com o segundo longa, Tia Virgínia, que ganhou cinco Kikitos no Festival de Gramado em agosto deste ano: roteiro, atriz (Vera Holtz), prêmio da crítica, direção de arte e desenho de som. Bem que poderia ter saído com a láurea de Melhor Filme, mesmo que Mussum, O Filmis (2022), de Silvio Guindane, tenha ficado em boas mãos. Em uma trama aparentemente simples, embora haja muita complexidade nas relações familiares, retrata as dúvidas e os caminhos nas vidas presentes e futuras. Conta com muita sensibilidade e perspicácia a história de uma mulher que dá nome ao título (Vera Holtz, de estupenda atuação para uma construção despojada que atinge uma exuberância impressionante na dramaturgia) aos 70 anos, que não tem nenhum filho e nunca se casou. Acaba sendo convencida pelas irmãs, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso) a se mudar para outra cidade com a tarefa de cuidar dos pais. Uma temática contemporânea, sempre latente e difícil de abordar em nossa sociedade de consumo com descarte dos mais idosos e a recepção dura, às vezes, principalmente para os mais jovens.

Eis uma comédia dramática honesta e cativante que se passa em apenas um dia numa casa e acompanha a preparação da ceia pela protagonista para receber as irmãs que estão chegando para celebrar o Natal, após a morte do patriarca. Vanda é casada com Tavares (Antônio Pitanga) e mãe da doce Ludmila (Daniela Fontan); já Valquíria tem um filho entediado que está se formando em Medicina (Iuri Saraiva). A situação de Virgínia é melancólica, que por codependência se vê obrigada na sua rotina em cuidar da mãe de 99 anos (Vera Valdez), uma anciã em adiantado estado de demência, que não interage, de corpo esquálido e que precisa de cuidados especiais, como no banho sentado numa cadeira, medicação, alimentação na boca e o uso constante de fraldas geriátricas. O cenário retrata um ambiente típico da classe média brasileira, onde o tempo parece estar estático, com a indissolúvel presença de um relógio de parede que anuncia a troca de horas, uma rústica cristaleira antiga com as taças e os pratos do casamento da matriarca, e um presépio para iluminar a chegada da pseudonoite festiva. Um mergulho nos confrontos e adversidades da irônica chamada "melhor idade" e o espectro da triste solidão, tanto da protagonista, a “tia solteirona”, enquanto as outras constituíram suas próprias famílias, bem como da mãe decrépita rumo ao ocaso.

Há alguma similitude em seu conteúdo de questionamento de vida com outras belas obras, tais como: A Partilha (2001), de Daniel Filho, quando quatro irmãs estão reunidas para o enterro da mãe discutem a divisão entre elas de um amplo apartamento em Copacabana e os móveis contidos nele. Passam a confrontar entre si suas opções de vida, já que todas seguiram caminhos bem diferentes. Fazem um balanço do passado e dos bons momentos que tiveram juntas, sendo obrigadas ainda a enfrentar as novas situações que o cotidiano impõe. Também em Feliz Natal (2008), de Selton Mello, o protagonista de 40 anos trabalha em um ferro-velho no interior, tem uma companheira e uma ocupação constante, mas no passado levou uma vida de grande irresponsabilidade, da qual saiu vivo por sorte. A proximidade do Natal faz um levantamento de sua vida, decidindo retornar à capital, enquanto que ele próprio está em busca de sua identidade.

Quem não conhece ou não teve no seio familiar, ou de amigos próximos, uma situação semelhante tão envolvente e humana apresentada? A dignidade de ambas, da filha no papel de cuidadora da mãe, é colocada em xeque pelo tempo e seus estragos existenciais do envelhecimento, pelo diretor. Há uma madura direção que demonstra controle sobre a narrativa e sobram méritos por não deixar cair em pieguismos ou exageros sentimentais baratos pela eficiência da condução equilibrada dos diálogos ásperos entre as irmãs. Os conflitos vão desde o engraçado para revelações dolorosas, com uma tensão constante na inveja, na chantagem emocional, muita hipocrisia, em que não falta a discussão do patrimônio, dinheiro, e até o assédio do futuro médico à empregada grávida. Assim já o fizera o argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (2009), pelo afago final das águas do rio que servem de cenário para o domicílio daquelas idosas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar. Ou pelo olhar do diretor carioca Marcos Bernstein no ótimo O Outro Lado da Rua (2004), refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos rumos. Ou com GranTorino (2008), de Clint Eastwood, sobre as perdas hereditárias e os valores dos descendentes colocados em risco pelo herói de guerra decadente, e ainda em Aos Olhos de Ernesto (2017), de Ana Luiza Azevedo, que mostra os traumas das perdas e dissabores do envelhecimento com muita sutileza para uma profunda reflexão.

O cenário único funciona como um grande teatro do realismo familiar estampado, no qual a protagonista pretende usar seu vestido de formatura no jantar como metáfora de uma vida que se perdeu no tempo, e o sonho de ser atriz talvez se esvaíra para sempre. A penumbra da virada da noite de Natal será marcada pela revelação de um grande segredo sob os acordes do clássico Bolero, de Ravel. Ela armazena ressentimentos, tristeza imensa, solidão e o sentimento de ingratidão das irmãs. Guarda em seu íntimo um sofrimento silencioso. Como num jogo de xadrez, a importância pelas nuances das relações de familiares fragilizadas ao extremo, fio condutor para o desfecho do processo de libertação da mulher sufocada pela dor do tempo e as frustrações advindas dos insucessos amordaçados pela estagnação e conformismo de uma realidade como um beco sem saída. Culpa, responsabilidade e liberdade de escolha se misturam nos ingredientes agridoces. Um magnífico drama existencial humano em formato de comédia dramática alicerçado com simplicidade sobre o angustiante tema universal do envelhecimento e suas idiossincrasias do tempo em seus dias próximos da finitude. Tia Virgínia soa como uma luz de força e equilíbrio, com suas mágoas e alegrias, mas nada definitivo no horizonte. As emoções e a vazão para o grande amor profissional de uma ilusão nunca esquecida pelo longínquo tempo, a ser reconciliado pela rebeldia da rotulada irmã louca, com a revelação do sigilo numa sequência singular da narrativa que leva para a metamorfose redentora.


Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Tia Virgínia" é um filme de humor sombrio do qual nos identificamos, pois sempre temos aquele desejo de falarmos umas verdades para o nosso próximo, sendo que os mesmos fogem por medo de encarar os fatos.