sexta-feira, 13 de março de 2020

Você Não Estava Aqui



Ética e Dignidade

Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas e pisoteadas pelo sistema, o diretor inglês Ken Loach, de 83 anos, nada mais é do que um humanista por natureza, e pelo seu penúltimo longa-metragem, Eu, Daniel Blake (2016), ganhou pela segunda vez a Palma de Ouro. Fez um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático naquele fabuloso drama social sobre a perversa reforma com mudanças radicais na Previdência Social. O título foi mais uma parceria com o roteirista indiano Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla. Anteriormente, já havia arrebatado o troféu em 2006 com Ventos da Liberdade, em Cannes.

Em uma espécie de continuidade do filme anterior, Loach está de volta com este magnífico Você Não Estava Aqui, novamente escrito por Laverty, para abordar o tema da moda: o empreendedorismo. Mas nem tudo soa como algo positivo, pois se escancara a falácia da servidão pelo falso milagre do negócio próprio como solução para o desemprego no mundo capitalista. São debatidas situações pouco divulgadas como a capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos e serviços. A iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças com alterações na rotina do empregado envolvem inovação e risco. Os conflitos históricos e opostos entre direita e esquerda como os princípios inerentes de divergências que irão ao encontro indubitavelmente do serviço e sua importância como meio de sustento e pilar basilar de sustentação do ser humano. A valoração moral e ética estão colocadas em xeque no drama humanista do realizador sobre o trabalho que deve dignificar o homem e não humilhá-lo como forma de destruição dos alicerces do microcosmo familiar.

A obra aponta que a informalidade não traz a recompensa prometida, e aos poucos os membros familiares entram em choque e passam a ser jogados uns contra os outros, numa catártica situação em que o cotidiano das pequenas coisas irá demonstrar pela ausência e solidão dos personagens em frangalhos focados pelas contingências da conjuntura caótica predominante. A trama é ambientada em Newcastle, norte da Inglaterra, quando o pai, Ricky Turner (Kris Hitchen), após ter passagens pela construção civil e jardinagem, resolve ser patrão de si mesmo e diante da circunstância financeira precária, decide adquirir uma van, na intenção de trabalhar com entregas de grandes empresas do comércio digital, aceitando não ter a carteira de trabalho assinada. Abdica do plano de saúde, folgas semanais, férias, horas extras, seguro e demais direitos trabalhistas legais. Assina um contrato em que se compromete a ser multado caso não cumpra com os horários preestabelecidos, pois o que interessa é “a satisfação do cliente”, alerta o rigoroso gerente Maloney (Ross Brewster). Para adquirir o veículo que fará as entregas, acaba vendendo o automóvel, que era utilizado pela esposa, Abby (Debbie Honeywood), nos deslocamentos como cuidadora profissional para atender idosos e doentes em locais distantes da residência.

A narrativa em tom naturalista pela espontaneidade de puro realismo dramático causa indignação e constrangimento no espectador atento às coisas do cotidiano na triste saga dos pais lutadores pela dignidade e sustento dos filhos: o adolescente rebelde, Sebastian (Rhys Stone) e a meiga pré-adolescente, Liza Jane (Katie Proctor). Com a ausência dos pais, o garoto passa a cometer pequenos furtos, brigas constantes na escola, com pichações em muros, até ser suspenso pelo diretor da instituição de ensino. Já a menina tem problemas para dormir, começa a sofrer de incontinência urinária, embora tente estabelecer um elo de vínculos e aproximações entre o pai e o irmão que partem para as vias de fato, acaba errando no método, tudo sob a supervisão da mãe conciliadora e dedicada, mas submissa por vezes. São causas e efeitos do desemprego batendo à porta diante da precarização do trabalho e os resultados pragmáticos e sub-humanos da “uberização”, em que o autônomo leva o pomposo nome de empreendedor franqueado. Ricky recebe uma garrafa de plástico para urinar e um bipe dispara, caso ele se afastar por mais de dois minutos do veículo, pois é monitorado pelo contratante por sofisticados programas computadorizados. Também não pode ausentar-se do trabalho para resolver problemas graves na família, exceto se deixar um motorista entregador em seu lugar, sob pena de ser multado e perder ainda as melhores rotas.

O veterano Loach demonstra vigor na condução da sua realização, embora sombria e sem grandes perspectivas para um olhar mais promissor nas relações trabalhistas futuras, nesta temática universal abordada com sensibilidade sobre a intensidade da correria do dia a dia para o sustento. As imagens do epílogo inusitado são apropriadas e desmistificadoras na tela. Cada vez mais as coisas se complicam e a explosão de raiva do filho pela passividade do pai que não reivindica seus direitos e se submete às humilhações são reveladoras da raiva contida contra o sistema vigente de demonização do trabalhador e a ruptura marcante e devastadora no núcleo familiar. Habilmente o cineasta conduz o drama com contornos de inverossimilhança pelas circunstâncias apresentadas. Você Não Estava Aqui apresenta conjunções não resolvidas colocadas como um libelo ao poder econômico pela discriminação de quem depende da oportunidade de emprego num clímax de tensão que cresce e mergulha no desespero da perda iminente da dignidade ao se encaminhar para um desfecho insolúvel.

Cria-se com extrema magia cinematográfica um doloroso painel de improbabilidades, sem fazer concessões aos envolvidos, com contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência. Há uma construção rica de elementos dentro de um roteiro enxuto e direto sem retóricas, afastando as grandes armadilhas que poderiam levar para uma história apelativa. Um drama intenso sobre a perversidade que enobrece o cinema, através de um enredo emocionante sobre os dissabores dos agentes honestos e com fibra, leva para o desequilíbrio dos que têm menos poder de reivindicação na sociedade. O conflito é fruto de um sistema instável e selvagem que vira as costas para os menos favorecidos quando estes precisam, para lançar um olhar reflexivo, através de tintas fortes e marcantes sobre os poucos aquinhoados. Um filme eloquente sobre a ausência de dignidade e ética pelas nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas, como assevera o gerente ao corrigir o futuro franqueado: “Contratação não, você se torna nosso colaborador”.

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