Bastidores do
Vaticano
Depois de Cidade de
Deus (2002), O Jardineiro Fiel
(2005), Ensaio Sobre a Cegueira
(2008) e 360 (2012), o festejado
cineasta brasileiro Fernando Meirelles está de volta com o drama Dois Papas, que irá fazer parte de sua respeitável
filmografia. Um projeto ambicioso em uma coprodução do Reino Unido, Itália,
Argentina e EUA, bancada pela Netflix. Não chega a causar temor no Vaticano, ao
realizar uma obra sobre os bastidores da cúpula do Catolicismo, assim como ocorreu com Nanni
Moretti no contundente Habemus Papam (2011),
uma criação com ironia fina na
eleição papal; ou na sátira à igreja
através de um complicado padre da periferia de Roma em
A Missa Acabou (1985). O roteiro dinâmico e abrangente de
Anthony McCarten (de A Teoria de Tudo
e O Destino de Uma Nação) tem
respaldo na sua experiência para dar vida aos diálogos ferinos dos
protagonistas, em tom sutil com refinada finesse de humor em situações tensas e
difíceis sendo respaldadas por conversas e olhares reveladores do cardeal argentino
Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce- excelente atuação e uma semelhança física
incrível) com o papa Bento XVI (Anthony Hopkins- de atuação magistral e
irretocável).
O longa-metragem retrata a insatisfação do jesuíta humilde Bergoglio,
que viria a se tornar o papa pop Francisco que assovia Dancing Queen, do grupo musical Abba, mas antes estava decidido a
pedir sua aposentadoria, devido a divergências sobre a forma como o litúrgico
alemão Joseph Ratzinger - eleito em 2005 como Papa Bento XVI, após a morte de João
Paulo II- vinha conduzindo a Igreja com extremo conservadorismo. Com a passagem
já comprada para Roma, o argentino é surpreendido com o convite do próprio papa
para visitá-lo. Em uma conversa pouco amistosa, iniciam um duelo áspero de pensamentos
para debaterem não apenas os rumos do catolicismo, mas o passado e o presente
que os envolvem para vislumbrarem novos horizontes que os fiéis tanto aguardam.
Abordam algumas peculiaridades da personalidade de cada um, embora haja ausência
no roteiro da polêmica participação na Juventude de Hitler durante a
adolescência de Ratzinger. Porém, a juventude de Bertoglio em Buenos Aires foi
dissecada, inclusive que estava prestes a se casar, tendo abandonado a noiva em
nome da religião, bem como sua omissão no período da Ditadura Militar na
Argentina, deixando alguns padres em maus lençóis e entregues aos governantes
do período de anos de chumbo, acaba por fazer uma sincera autocrítica com
direito ao arrependimento.
Além da abordagem que passa pelas eleições realizadas entre
os cardeais, o drama foca os santos padres e suas hesitações em manifestarem-se
para os fiéis que o esperam na Praça de São Pedro. Meirelles conduz com
elegância as angústias e diferenças de ideias entre os dois e lança uma
hipótese provocativa, ou seja, caso vacilassem e desistissem da missão de Deus
de conduzirem os homens na terra, como seria o futuro e a fé dos cristãos? O
filme retrata homens falíveis. Francisco demonstra ser uma pessoa angustiada
com um novo desafio pela frente, pensa em abandonar a posição de cardeal e
retornar para sua cidade natal, para refazer suas reflexões diante dos destinos
que a Igreja adota, como não se aprofundar nas denúncias dos reiterados
assédios e das repetidas acusações de pedofilia. Demonstra grande insatisfação
com o escândalo dos documentos confidenciais vazados antes da estrondosa
renúncia de Bento XVI. A aflição dogmática pela conjuntura da engrenagem no
Vaticano deixa o intenso cardeal argentino preocupado com os destinos futuros
do catolicismo. Em um dos diálogos faz críticas à própria Igreja ao alfinetar:
“Nada é estático na natureza, nem mesmo Deus”. Também arremata em tom de desabafo
ao indagar: “Jesus construiu muros?”
A leveza das discussões cômicas se justificam nos bastidores
entre os protagonistas e soam como um período de transição para o comunicado da
renúncia que viria impactar o mundo e em especial os católicos. Ao juntar-se
com os mortais pelas ruas, Francisco demonstra sua proximidade com as
comunidades carentes na periferia de Buenos Aires simbolizando a América Latina
pobre contrapondo com a riqueza e a ostentação da Europa. Reflete a
informalidade dos latinos pela acessibilidade, descontração e a paixão pelo tango
e o futebol, identificado como torcedor fanático do clube argentino San Lourenzo
de Almagro. Mas a crise estabelecida no Vaticano o leva para os caminhos que parecem
encurtar e jogá-lo num labirinto de dúvidas e barreiras instransponíveis, que
sequer imaginava, vem à tona e o coloca de frente com uma realidade obscura e complexa
de um futuro incerto e cheio de antagonismos. Agora como Papa terá que
enfrentar os fiéis, quando chegar a hora de falar e levar uma palavra de
devoção e religiosidade àqueles que o esperam ansiosos, além da imprensa
faminta por informações e sequiosa de uma publicação nas páginas dos jornais e
revelar a identidade do eleito. Tudo é muito rápido na vida dele e o grande
momento lhe aguarda. O mundo parou para vê-lo, a fumaça branca chegou nas
chaminés, porém sua convicção pela modernidade será testada no posto máximo.
François Ozon, no arrebatador drama Graças a Deus (2019), muito bem demonstrou na corrosiva denúncia
diante de uma suposta intransigência deturpadora e inverossímil entre os
destinos do clero católico, onde as soluções pragmáticas são colocadas para
mascarar escândalos como a estúpida pedofilia que paira nos subterrâneos das
igrejas por conta da hipocrisia e o medo do escândalo religioso sobre a
irracionalidade bestial. Meirelles opta pela sutileza em tom de humor cáustico sobre
o encontro dos papas, para retratar a crença e a coragem como demonstrações que
não podem faltar pelos aficionados cristãos. Apesar do final de enganosa aparência
politicamente correta, aponta e fustiga as diferenças entre os dois personagens
centrais retratados e simbolizados como o novo e o ultrapassado. São os
compromissos e convicções pessoais que se chocam com as atitudes da
simplicidade de um que é adepto à abertura do diálogo próspero indo de encontro
à pompa autoritária em consonância com a política interna seguida pelo outro,
que defende ardorosamente ideias conservadoras reveladas pela inaptidão e falta
de habilidade para conduzir situações do cotidiano. Transparece ao espectador o
conflito de ideologias pelo ideal da fé religiosa manifestada como demonstração
fragilizada e decadente da Igreja Católica neste agradável drama humanista de
princípios opostos.
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