segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Aos Olhos de Ernesto

Vidas Solitárias

A gaúcha Ana Luiza Azevedo estreou com o longa-metragem Antes Que o Mundo Acabe (2009), uma produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, onde a diretora foi fundadora. Obteve os prêmios de Melhor Direção de Ficção, Figurino, Trilha Sonora, Direção de Arte e Fotografia no II Festival de Paulínia, em 2009. Em uma trama aparentemente simples, embora houvesse complexidade, retratou as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram em suas vidas futuras. Havia similitude em seu conteúdo de questionamento da infância com outras belas obras, tais como: Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho e o magnífico As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky. Inspirou-se na disputa de uma garota pelos dois amigos que se apaixonam pela mesma mulher em Jules e Jim- Uma Mulher para Dois (1962), de François Truffaut. Tem em sua filmografia o curta Dona Cristina Perdeu a Memória (2002), tendo dividido a direção com Jorge Furtado no telefilme Doce Mãe (2012) e o badalado curta Barbosa (1988).

Dez anos depois, a cineasta está de volta com o comovente Aos Olhos de Ernesto, em que divide o roteiro com Furtado, sendo produzido novamente pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Foi lançado recentemente nas plataformas da Net Now, Oi Play, Vivo Play e Looke. Recebeu o prêmio da crítica na Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado e foi laureado pelo público no Festival de Punta del Este, no Uruguai. O drama acompanha o fotógrafo viúvo uruguaio radicado em Porto Alegre, de 78 anos, Ernesto (Jorge Bolani- de ótima atuação, o mesmo ator do cultuado filme uruguaio Whisky, de 2004), que está perdendo a visão por decorrência da idade, mas que tenta dissimular, achando que consegue enganar as pessoas mais próximas. Casualmente, aproxima-se da jovem 23 anos, Bia (Gabriela Poester- convincente no papel), uma cuidadora de cães que apanha do namorado usurpador, que lhe abrirá novos horizontes para o mundo, ao ler e escrever cartas do idoso para Lucía, um amor antigo de 65 anos de espera que acabou de enviuvar no seu país de origem. A improvável amizade dos dois terá uma relação fraternal que possibilitará uma impressionante capacidade de superar as dificuldades existentes no ancião. Uma temática contemporânea sempre latente e difícil de abordar em nossa sociedade atual de consumo com descarte dos mais velhos e a recepção dura para os mais jovens.

Ana Luiza coloca os traumas das perdas e dissabores do envelhecimento com muita sutileza e sensibilidade para uma profunda reflexão. O personagem central não é uma pessoa ressentida, pois tem no vizinho amigo, Javier (Jorge d’Elia), um bom suporte para continuar vivendo, diante das leituras do jornal impresso diariamente pela manhã, mesmo sendo incomodado pela fumaça do charuto. O filho Ramiro (Júlio Andrade) é um recém-separado que vai embora para dar continuidade em sua vida, mas presta ajuda financeira ao pai. A diarista está sempre atenta aos desmandos do patrão e, às vezes, se torna inconveniente pelo seu negativismo. Ele quer viver de forma independente porque tem em mente que ainda pode se divertir e comprar roupas para rejuvenescer, fazer novas amizades e deixar fluir sua paixão de outrora, o que nos remete para o romance O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, lançado em 1985, que depois foi levado para o cinema pelo diretor Mike Newell, em 2007, protagonizado Javier Bardem.

O ritmo cadenciado e suave da canção de Caetano Veloso remete para o epílogo das sonatas dos violoncelos de Bach, com imagens das ruas da Capital gaúcha, especialmente a Alberto Torres, onde mora o protagonista num apartamento escuro rodeado de livros e lembranças do passado. Há uma madura direção que demonstra controle sobre a narrativa e sobram méritos por não deixar cair em pieguismos ou exageros sentimentais pela eficiência da condução equilibrada dos diálogos ásperos ou ternos entre a jovem e o seu velho protetor que a trata como uma neta. As diferenças gigantescas de suas faixas etárias marcam as conversas e seus duelos de ideias distintas, entrecortadas pelo divertimento que encontram nas poucas saídas pelas ruas, como na manifestação em que Ernesto recita “Por que Cantamos”, do escritor conterrâneo Mario Benedetti, texto oriundo da época da ditadura militar. Existem alguns choques de gerações que se estabelecem quando o personagem central se nega a assistir o clássico Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, pelo celular; enquanto que a jovem acha estranho e impensável colocar na carta de Ernesto para a sua amada o termo “estimada”, bem como escrever na máquina manual de escrever em detrimento da caligrafia.

Eis um mergulho nos confrontos e adversidades da chamada ironicamente "melhor idade" e o espectro da solidão melancólica. A cineasta retrata com dignidade e até com algum otimismo a temática do envelhecimento, assim como já o fizera Daniel Burman em Dois Irmãos (2009), pelo afago final das águas do rio que servem de cenário para o domicílio daquelas idosas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar. Ou pela beleza estética de Laís Bodanzky no notável drama Chega de Saudade (2008), tendo como cenário um clube de São Paulo com suas diversas histórias numa noite de baile, aflorando as ilusões e desilusões, perdas e ganhos, amor e traição, para sintetizar tudo num imenso isolamento social. Ou pelo olhar de Marcos Bernstein no ótimo O Outro Lado da Rua (2004), refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos rumos. Ou ainda com GranTorino (2008), de Clint Eastwood, sobre as perdas hereditárias e os valores dos descendentes colocados em xeque de forma exuberante pelo herói de guerra decadente. Aos Olhos de Ernesto é um jogo de xadrez, metáfora bem utilizada nas partidas realizadas entre os personagens, e a importância pelas nuances das relações de amizade, fio condutor para o desfecho do processo de libertação das emoções e a vazão para o grande amor nunca esquecido pelo longínquo tempo, a ser reconciliado, neste magnífico drama existencial lírico e humano alicerçado com simplicidade sobre o angustiante tema universal da terceira idade.

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