Fantasmas do Medo
Vencedor do melhor filme brasileiro pelo júri da crítica e
ganhador do prêmio especial do júri no festival de Gramado deste ano, O Silêncio do Céu foi rodado em Montevidéu, é falado em espanhol e foi dirigido por Marco Dutra, de Trabalhar Cansa (2011), Desassossego
(2011), Quando Eu Era Vivo (2012) e As Boas Maneiras (2014). Não é uma
coprodução internacional, tendo e vista que foi todo financiado com dinheiro do
Brasil, segundo seu produtor, Roberto Teixeira, embora o elenco seja
multinacional. O instigante roteiro foi assinado por Caetano Gotardo,
roteirista e diretor de O Que Se Move
(2013), Lucía Puenzo, realizadora de O
Médico Alemão (2013) e por Sergio Bizzio, autor do livro Era El Cielo, que foi adaptado
livremente para o cinema.
O filme impacta pelo suave tom noir do cineasta que tem domínio exemplar dos atores em cena, além
do notável senso de comunicação pela narrativa em off equilibrada de realismo puro e com doses de um clímax em alto
grau de suspense, ao melhor estilo do mestre Alfred Hitchcock, num cenário com
cores apropriadas para desenvolver a trama, através da fascinante fotografia de
Pedro Luque, bem coadjuvado pela trilha sonora adequada e no ponto certo de
Guilherme e Gustavo Garbato. A equipe técnica é fundamental e está bem afinada
com o contexto da realização, que começa com o estupro como mola propulsora
para mergulhar no desenrolar do enredo sobre os medos do ser humano e as
multifobias do protagonista Mario (Leonardo Sbaraglia- excelente desempenho do
intérprete de Relatos Selvagens). Ele
assiste dentro de casa, paralisado e em estado quase catatônico, sua mulher
Diana (Carolina Dieckmann- no melhor papel da carreira) ser violentada por dois
rapazes, sendo um deles Néstor (Chino Darín- filho do astro Ricardo Darín) que
trabalha num sinistro viveiro de plantas com a mãe (Mirela Pascual, atriz do
filme uruguaio Wisky), entre as quais
os cactos espinhosos alegóricos do matrimônio conturbado.
O realizador interage com o espectador e conta a cena brutal
duas vezes: uma pela ótica da vítima e a outra pelo marido que vai buscar os
dois filhos menores na escola. O segredo será mantido até o desfecho entre o
casal. Um finge ao outro, e vice-versa, que não sabe nada do fato. Como num
jogo de xadrez, as peças do tabuleiro se movem com o andar da história. Há um
clima de terror silencioso entre os dois que causa tensão sufocante máxima.
Diana sofre com os pesadelos noturnos das lembranças do dia fatídico, já Mário nutre
um sentimento de culpa, está sempre ofegante e não consegue esconder sua raiva,
seu ódio imensurável pela situação dos abusadores identificados por ele. Cria
um personagem fictício, como na vida real em que escreve roteiros para filmes, para
atingir seu objetivo da vingança servida como um prato frio de comida, tentando
afastar desta forma os fantasmas que lhe rodeiam e povoam sua mente de um homem
frágil e repleto de medos fóbicos doentios que pululam seu interior.
O Silêncio do Céu
desborda o drama para ir ao encontro dos componentes essenciais do thriller
policial e flertar com o suspense psicológico, até chegar à tragédia iminente
com elementos de dor, amor, repulsa e sinais de traição que irão se
desanuviando para um epílogo explosivo para reconquistar não só a mulher amada,
de quem recém estava separado, e agora na fase de superação para a definitiva
reaproximação, mas principalmente adquirir a autoestima perdida. Uma típica
simbiose de uma aliança para buscar a dignidade que se evaporou pelo caminho
tortuoso do sentimento da perda. O filme retrata com ênfase o vazio existencial
do casal esmagado por segredos que são mantidos como um ato de cumplicidade que
irá aos poucos sendo preenchido por revelações implícitas assustadoras, sem que
haja necessidade de expressar diretamente entre eles naquele ambiente
claustrofóbico e perverso.
Em drama com temática similar, Paulina (2015), do argentino Santiago Mitre, aborda a violência feminina
de uma maneira pouco convencional, ao contextualizar a trama e dar luzes à
história em uma reflexão profunda, tendo como subtema a justiça a serviço dos
interesses pessoais de poderosos. Dutra retrata um filme inquietante que
perturba de certa forma a plateia, tanto pela ótica da mulher violada que lida
calada com seu sofrimento de vítima, como também mexe na angústia dolorosa do
homem fragilizado desde a infância, como relata no prólogo, para buscar forças
exteriores que irão lhe dar combustível para reagir internamente como um digno
ser racional que pode exorcizar suas quimeras ameaçadoras que o acompanham e o
tornam uma pessoa sem reação, como uma parasita que assiste a tudo imóvel. Mas
a catarse final o reabilitará por alguns momentos, não em definitivo, como
confessa à esposa no encontro no interior do carro, numa bela cena que emociona
e comove sem ter a pretensão
de soluções definitivas. Uma obra estupenda de um ensaio
psicológico da construção de dois sensíveis personagens melancólicos que o
destino aproximou nesta fusão de gêneros de elogiado domínio estético superior
aos anteriores do cineasta que, ao lado do polêmico Aquarius, deverá estar entre os dez melhores do ano.
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