terça-feira, 27 de setembro de 2016

O Silêncio do Céu


Fantasmas do Medo

Vencedor do melhor filme brasileiro pelo júri da crítica e ganhador do prêmio especial do júri no festival de Gramado deste ano, O Silêncio do Céu foi rodado em Montevidéu, é falado em espanhol e foi dirigido por Marco Dutra, de Trabalhar Cansa (2011), Desassossego (2011), Quando Eu Era Vivo (2012) e As Boas Maneiras (2014). Não é uma coprodução internacional, tendo e vista que foi todo financiado com dinheiro do Brasil, segundo seu produtor, Roberto Teixeira, embora o elenco seja multinacional. O instigante roteiro foi assinado por Caetano Gotardo, roteirista e diretor de O Que Se Move (2013), Lucía Puenzo, realizadora de O Médico Alemão (2013) e por Sergio Bizzio, autor do livro Era El Cielo, que foi adaptado livremente para o cinema.

O filme impacta pelo suave tom noir do cineasta que tem domínio exemplar dos atores em cena, além do notável senso de comunicação pela narrativa em off equilibrada de realismo puro e com doses de um clímax em alto grau de suspense, ao melhor estilo do mestre Alfred Hitchcock, num cenário com cores apropriadas para desenvolver a trama, através da fascinante fotografia de Pedro Luque, bem coadjuvado pela trilha sonora adequada e no ponto certo de Guilherme e Gustavo Garbato. A equipe técnica é fundamental e está bem afinada com o contexto da realização, que começa com o estupro como mola propulsora para mergulhar no desenrolar do enredo sobre os medos do ser humano e as multifobias do protagonista Mario (Leonardo Sbaraglia- excelente desempenho do intérprete de Relatos Selvagens). Ele assiste dentro de casa, paralisado e em estado quase catatônico, sua mulher Diana (Carolina Dieckmann- no melhor papel da carreira) ser violentada por dois rapazes, sendo um deles Néstor (Chino Darín- filho do astro Ricardo Darín) que trabalha num sinistro viveiro de plantas com a mãe (Mirela Pascual, atriz do filme uruguaio Wisky), entre as quais os cactos espinhosos alegóricos do matrimônio conturbado.

O realizador interage com o espectador e conta a cena brutal duas vezes: uma pela ótica da vítima e a outra pelo marido que vai buscar os dois filhos menores na escola. O segredo será mantido até o desfecho entre o casal. Um finge ao outro, e vice-versa, que não sabe nada do fato. Como num jogo de xadrez, as peças do tabuleiro se movem com o andar da história. Há um clima de terror silencioso entre os dois que causa tensão sufocante máxima. Diana sofre com os pesadelos noturnos das lembranças do dia fatídico, já Mário nutre um sentimento de culpa, está sempre ofegante e não consegue esconder sua raiva, seu ódio imensurável pela situação dos abusadores identificados por ele. Cria um personagem fictício, como na vida real em que escreve roteiros para filmes, para atingir seu objetivo da vingança servida como um prato frio de comida, tentando afastar desta forma os fantasmas que lhe rodeiam e povoam sua mente de um homem frágil e repleto de medos fóbicos doentios que pululam seu interior.

O Silêncio do Céu desborda o drama para ir ao encontro dos componentes essenciais do thriller policial e flertar com o suspense psicológico, até chegar à tragédia iminente com elementos de dor, amor, repulsa e sinais de traição que irão se desanuviando para um epílogo explosivo para reconquistar não só a mulher amada, de quem recém estava separado, e agora na fase de superação para a definitiva reaproximação, mas principalmente adquirir a autoestima perdida. Uma típica simbiose de uma aliança para buscar a dignidade que se evaporou pelo caminho tortuoso do sentimento da perda. O filme retrata com ênfase o vazio existencial do casal esmagado por segredos que são mantidos como um ato de cumplicidade que irá aos poucos sendo preenchido por revelações implícitas assustadoras, sem que haja necessidade de expressar diretamente entre eles naquele ambiente claustrofóbico e perverso.

Em drama com temática similar, Paulina (2015), do argentino Santiago Mitre, aborda a violência feminina de uma maneira pouco convencional, ao contextualizar a trama e dar luzes à história em uma reflexão profunda, tendo como subtema a justiça a serviço dos interesses pessoais de poderosos. Dutra retrata um filme inquietante que perturba de certa forma a plateia, tanto pela ótica da mulher violada que lida calada com seu sofrimento de vítima, como também mexe na angústia dolorosa do homem fragilizado desde a infância, como relata no prólogo, para buscar forças exteriores que irão lhe dar combustível para reagir internamente como um digno ser racional que pode exorcizar suas quimeras ameaçadoras que o acompanham e o tornam uma pessoa sem reação, como uma parasita que assiste a tudo imóvel. Mas a catarse final o reabilitará por alguns momentos, não em definitivo, como confessa à esposa no encontro no interior do carro, numa bela cena que emociona e comove sem ter a pretensão de soluções definitivas. Uma obra estupenda de um ensaio psicológico da construção de dois sensíveis personagens melancólicos que o destino aproximou nesta fusão de gêneros de elogiado domínio estético superior aos anteriores do cineasta que, ao lado do polêmico Aquarius, deverá estar entre os dez melhores do ano.

Nenhum comentário: