A Escolha
Woody Allen mesmo se reinventando, ou seguindo sua
trajetória de comédias de costumes e dramáticas, ou ainda nos dramas com
pitadas de suspense com humor cáustico, mantém fiel o sarcasmo e a sutil ironia
fina como marcas registradas de sua extensa filmografia, por ser um dos melhores
cineastas em atividade no mundo. Café
Society é o 48º. longa-metragem do diretor e roteirista que nos remete para
a lenda do vinho: “Quanto mais velho é melhor”. Assim como no filme anterior, Homem
Irracional (2015), também não atua, mas
mantém o vigor e a capacidade de construção de um cinema voltado para as
inquietações angustiantes do cotidiano e a análise dele mesmo através desta
fascinante história de amor que é contextualizada no final dos anos de 1930,
mesclando a burguesia da sociedade hollywoodiana
no ápice dos anos dourados com o submundo mafioso do bairro Bronx de Nova
Iorque. Uma fábula magnífica sobre a impossibilidade da felicidade desfeita de
um sonho pela ganância do dinheiro diante da acomodação e das circunstâncias
periféricas que rondam destinos.
Numa visita à filmografia de Allen, Zelig (2003) é uma de suas das obras-primas; bem como se vislumbra uma
retomada do inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela
que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo
ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película para fugir do
martírio de sua vida sem graça. Porém
Café Society se aproxima em muito das melhores realizações do velho mestre que
centra seu foco no cenário de uma família judia, cujo tio, Phill Stern (Steve
Carell) é um renomado agente de grandes estrelas em Hollywood; o sobrinho mais
velho, Ben (Corey Stoll) é um gângster; a irmã do meio, Evelyn (Sari Lennick) é
uma professora casada com o filósofo comunista Leonard (Stephen Kunken); e o
caçula, Bobby (Jesse Eisenberg é o ator-fetiche perfeito para alter ego do
cineasta), um jovem ingênuo que procura um lugar digno para sobreviver, mesmo
sem rumo, deixa para trás os pais e vai para Los Angeles arrumar um emprego com
o poderoso irmão da sua mãe (Jeannie Berlin). Lá chegando, encontra Vonnie
(Kristen Stewart), a bela e charmosa secretária do tio, que o leva para fazer
um tour na cidade. Os corações explodem de paixão, mas ela tem um namorado
secreto, embora casado, não a deixa e usa do poder financeiro, motivo brutal
para a fantasia ser superada pela realidade.
A comédia dramática reflete as esperanças e desilusões dos
destinos cruzados que irão ao poucos se afastando na ciranda de situações e
enroscos que se apresentam na urdida trama. Bobby volta para Nova Iorque, onde
gerenciará um luxuoso clube do irmão bandido que manda desovar corpos em
construções de prédios. A casa noturna é frequentada por artistas, celebridades,
milionários e gângsteres. Mergulha com profundidade nos relacionamentos
despudorados e interesseiros, nas traições com método de sedução convencional. Os
personagens do cineasta muitas vezes são reescritos, às vezes com bons resultados
e em outros se superam. Mais uma vez parte dos desajustes do amor e da paixão
para ingressar na melancólica solidão existencial do amargo romance, como no
estupendo desfecho da entrada de um novo ano. Tudo isso regado com apreciável
sutileza e a analogia inteligente nas colocações para armadilhas lançadas com
primazia no enredo, como típicas características de Allen.
As relações interpessoais e os romances frustrados servem de
alicerce para explorar uma narrativa densa nos aspectos históricos dos EUA. Além
da música pela celebração do jazz, retrata os valores da tradição, da cultura e
da religião judaica, bem como o cotidiano dos usos e costumes da família judia
com suas diversidades de fracassos e sucessos contrastando com ensinamentos da crença
dos cristãos, para alcançar as diferenças fraternais na constituição familiar
como elementos primorosos numa abordagem de assuntos que vão do adultério a
negócios. O triângulo amoroso é outra marca do diretor, que sabe explorar com
sensibilidade os meandros da alma nesta contribuição significativa para o
cinema voltado para os acontecimentos rotineiros do amor, da paixão
desenfreada, os fracassos do ser humano e o pessimismo com o mundo das pessoas
amarguradas, pelo olhar profundo deste assumido realizador bergmaniano. Satiriza
e ironiza a vida pelos vestígios eivados de perturbações latentes reveladas,
mas isso não é o todo, apenas um resultado através da busca do significado
existencialista.
Houve crítico comparando com bons argumentos a similitude
com o clássico Casablanca (1942), de Michael
Curtiz, e a referência na obra de Allen com Sonhos
de um Sedutor (1972), onde uma mulher ama dois homens, mas com diferentes
formas pelo contexto, porém terá que fazer a inusitada escolha. As razões não
são discutidas, porém a renúncia do prazeroso amor pelo status da segurança
refletirá na melancólica dor sem volta das vítimas do coração. Café Society é uma realização espetacular
não só por ser deslumbrante visualmente, mas pela retomada das ideias como as
relações frívolas da Broadway, pelos diálogos primorosos, pelos encontros e
desencontros, a harmonia lúcida na essência da existência, mas principalmente
na felicidade rompida do sonho pela realidade financeira. O difícil é apontar, ou achar, algum defeito deste octogenário
diretor cerebral que constrói um filme revelador com a leveza e a suavidade da
soberba trilha sonora do recorrente jazz, e ainda da fabulosa fotografia
assinada por Vittorio Storaro de O Último
Imperador (1987). Insere-se como um dos dez melhores do ano.
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