terça-feira, 13 de setembro de 2016

Aquarius



A Resistência

Depois do badalado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de melhor filme no Festival do Rio, Kleber Mendonça Filho causou polêmica com Aquarius, seu último longa-metragem, diante do protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes, o filme virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. Outro fato controvertido se deu pela ação do Ministério da Justiça, que determinou impropriedade para menores de 18 anos, voltou atrás e reclassificou para 16 anos. Foi visto pelos produtores como retaliação do governo. Aclamado pelo público presente com gritos e vaias veementes contrários à atual situação da política brasileira, ao ser exibido como hours concours na abertura da 44ª. edição do Festival de Gramado. Outra polêmica aconteceu com os diretores de Boi Neon, Mãe Só Há Uma e Para Minha Amada Morta, que retiraram seus títulos de postulantes ao Oscar de 2017, em solidariedade ao cineasta pernambucano, mas não adiantou, foi desbancado por Pequeno Segredo, de David Schurmann.

Um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a temática do cotidiano invadido e da especulação imobiliária desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. A narrativa traz no bojo um realismo da exacerbação pela intransigência através de métodos absurdos de coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe venda seu apartamento para construir um novo prédio no espaço. Sonia Braga está esplendorosa e mergulha com uma desenvoltura impecável para atuar de maneira sóbria no papel da personagem central Clara, de 65 anos, uma jornalista aposentada, escritora, viúva e mãe de três filhos adultos, que saiu de um câncer de mama, o qual venceu com galhardia e determinação a moléstia, para lutar agora contra outro obstáculo da vida, sua permanência ameaçada no último edifício antigo da Av. Beira-Mar, da bela praia de Boa Viagem da cidade de Recife. Todos os antigos vizinhos venderam suas unidades, exceto ela, que quer ficar ali, tendo deixado bem claro que não pretende fazer negócio.

O diretor, que também assinou o enxuto roteiro, conta uma história aparentemente simples, porém surgem na trajetória da trama situações complexas encontradas no dia a dia de qualquer mortal. Clara é uma espécie de resistência aos desmandos especulativos, pois finca pé e não aceita discutir a proposta, sequer abre qualquer possibilidade para o investidor adquirir seu patrimônio de valor estimativo imensurável. Foi neste apartamento que viveu momentos felizes com o marido e criou seus filhos, pois neste lugar está todo seu passado e pretende sair dali somente morta, como afirma numa cena de um diálogo ríspido com um dos engenheiros. Embora esteja numa situação delicada, inclusive para seus ex-vizinhos, por ser o último entrave do progresso para a modernidade apregoada. É comovedora sua energia diante da pressão psicológica pelo constrangimento de ter que presenciar uma suruba no andar superior com música alta pela madrugada, encontros religiosos de uma igreja evangélica e lidar com a infestação de ninhos de cupins plantados voluntariamente pela força do poder como ameaça explícita à sua integridade física.

O filme retrata com grande sensibilidade as hipocrisias e os cinismos dos representantes da construtora, mas que terão no sarcasmo e na ironia da brava protagonista que se agiganta com o aval de dois dos três filhos, enquanto que a filha (Maeve Jinkings) é contrária à sua posição, chega a questionar a legitimidade da mãe, numa cizânia familiar que aos poucos vai sendo contornada pela clarividência de posicionamento. A amizade do salva-vidas (Irandhir Santos) é outro fator positivo para sua luta, além da fidelidade afetiva das amigas. O longa é dividido em três capítulos, abre com a linda música Hoje, de Taiguara, e irá fechar com a mesma canção, passando pela eclética trilha sonora ao som de Roberto Carlos, Gil, Bethânia, Villa-Lobos e Queen. A fotografia de Pedro Sotero e Eduardo Serrano é outro acerto do fascinante cenário de imagens aconchegantes e bem exploradas, como nas festas de aniversário embalados pelo tradicional “parabéns a você”. O cineasta retrata com delicadeza o lado familiar e carinhoso da protagonista que vira uma leoa para defender seus direitos inalienáveis, que irresigna-se com o velho sendo descartado pela substituição do novo em nome progresso do futuro incerto dos planos de demolição. A realocação e a modernização ditadas como regras de soluções pragmáticas chocam-se com o bem-estar e o sagrado direito da livre definição, ainda que seja tachada de retrógrada para simbolizar sua liberdade de decisão, contrapondo-se ao que é salutar para seu destino traumatizado pelas cicatrizes.

Aquarius é um drama que transita para o suspense sobre a escolha, ainda que com algum saudosismo, como na preferência pelos discos de vinil, a rejeição pelo digital em nome do analógico, mas que não cai no melodrama fácil ao fugir das armadilhas inerentes. Mendonça Filho não lança mão de metáforas e alegorias como no longa anterior, busca no afeto e na manutenção da memória subsídios básicos e indispensáveis para a construção deste enredo magnífico de reverenciamento da preservação como forma de manter viva a alma como essência da poesia contrária à ganância especulativa sem limites. O realizador aponta para a imposição da força dominadora representada pelo progresso desvairado dominante no contexto ao demonstrar seu poder de fogo na pressão psicológica sob forma de tortura, embora seja um filme quase que silencioso para apresentar a insegurança que vai instalando-se e reflete na tranquilidade estremecida. Foram anos áureos que ficaram para trás num retrato dos contrastes de uma realidade brasileira de anomalias e distanciamentos e avança com sintonia fina através dos sonhos convulsivos que poderão ser reais com uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade, através de elementos caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade esta emblemática realização sobre o libelo da injustiça como uma obra maior no cenário nacional.

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