Mágoas do Passado
A trajetória do talentoso diretor Xavier Dolan começou muito
cedo, com apenas 20 anos já conquistou seu público cativo na extraordinária estreia
confessional Eu Matei a Minha Mãe (2009),
sobre a relação edipiana e o contemplamento com desprezo. No segundo longa, Os Amores Imaginários (2010), dá uma boa
derrapada com um filme mais leve e engajado na causa gay, deixa a desejar como
uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser comprometido com uma análise
crítica mais aprofundada. Depois veio Laurence
Anyways (2012) mostrando os paradoxos da existência humana ao enfrentar uma
situação delicada da troca de sexo para virar mulher através de uma cirurgia, aborda
os problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que manter os
laços de uma união. Tom na Fazenda
(2012) não teve boa repercussão, nem de público e sequer da crítica, porém a
penúltima realização, Mommy (2014),
reacendeu a luz da inspiração do jovem cineasta de 27 anos.
Agora o realizador canadense volta com seu sexto
longa-metragem, É Apenas o Fim do Mundo,
que teve lançamento mundial no Festival de Cannes, em maio deste ano. Eis um potente
drama intimista com discussões e buscas do passado na essência das aparentes
questiúnculas invisíveis que ficaram sem um desenlace a contento. Como que
jogadas embaixo do tapete, inoportunamente são retiradas de lá e passam a fazer
parte deste vigoroso painel num cenário de frustrações do microcosmo familiar e
suas aberrações de futricas que tomam dimensões estratosféricas. Um retrato
digno da violência estampada na agressão psicológica pelas palavras ferinas e
pontuais como um míssil à procura da vítima que é lançado para alcançar o alvo
dentro do convívio pouco estreito daquele núcleo desestruturado, mas que
aparentemente vai tocando a vida como se nada de obstáculos os perturbassem. São
inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na
realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da união resiste pela
figura maternal. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos
perdidos.
Baseado na peça teatral homônima de Jean-Luc Lagarce, a
trama aborda o escritor Louis (Garspard Ulliel, convincente na interpretação),
longe de casa há 12 anos, retorna para contar sua tragédia pessoal, diante da
iminência da morte por decorrência de uma doença terminal. O encontro com os
membros familiares é pouco auspicioso. Sente-se sufocado pela receptividade agressiva do irmão, o irascível
Antoine (Vincent Cassel, perfeito no papel), mas terá a compreensão da destrambelhada
irmã, Suzanne (Léa Seidoux) é afável e ao mesmo tempo problemática pela
dependência de drogas, quer ter vida própria, sair daquele lugar interiorano
para desabrochar na vida. É importante a presença marcante da mãe (Nathalie
Baye), sempre pronta para acalmar os ânimos e contemporizar com suas sacadas
sutis e positivas. É uma defensora ferrenha da união e tenta pacificar com seu
jeito descolado os diálogos ríspidos entre os filhos. O objetivo daquela
reunião torna-se frustrante, pois o preconizado por Louis toma outros rumos e
sai do controle completamente, como uma locomotiva que descarrila dos trilhos
num declive montanhoso. Principalmente com o temperamental irmão que se acha inferiorizado profissionalmente, uma espécie
de brutamonte pseudocivilizado, sempre dá contornos antagônicos nas conversas
mais amenas, falta-lhe a sensibilidade que sobra na esposa submissa, Catherine
(Marion Cotillard), com seus olhos de interrogação, mas sempre disposta a dar
um carinho ao cunhado, considerado como um estranho no ninho pelo marido
implacável.
Dolan se aprofunda na temática com sua sensibilidade e hábil
sutileza para estabelecer os contrastes familiares, onde pequenas coisas e
desavenças de outrora tomam proporções absolutas para inibir o que seria um
doloroso relato sobre a iminente morte do visitante, com sua sombria aparência,
suas reminiscências que não são entendidas como as indicativas luzes sugeridas pelo
protagonista, tais como: ir até o café do aeroporto ou rever a antiga casa
abandonada em que passou a infância. O encontro sonhado toma outros horizontes,
passa pela rotina de lágrimas por brigas e desacertos de um passado removido
com seus fantasmas ressurgindo com sangue nos olhos, e por vezes, a vingança
mistura-se a ciúmes camuflados se estabelecendo com garras e tentáculos
gigantes. Até o almoço no jardim virou uma sucursal do inferno, pelas
idiossincrasias em formato de acusações verbais inusitadas para todos os lados,
especialmente do recalcado Antoine, no embalo da bela trilha sonora pop, entre
as quais a romena Dragonstea Din Tei,
da versão original de Festa no Apê, do
brasileiro Latino.
O desfecho com o pássaro inerte no chão, após o toque da
meia-noite no antigo relógio cuco de parede, propiciando a revoada premonitória
da pequena ave, é uma poderosa metáfora da liberdade pelo fenecimento, em que os
mortais rompem as amarras da vida diante da intransigência, no confronto entre
vida e morte e as emoções existenciais sobre o progressivo fim do ser humano,
remete para a bela cena do estupendo drama Amor
(2012), de Michael Haneke, quando a pomba invasora do apartamento é expulsa
pelo ancião, representa então a libertação do espírito da mulher doente de seu
corpo, como se fosse um cativeiro indesejado. É Apenas o Fim do Mundo tem contundência por ser um filme dolorido
pela melancolia de um reencontro turbulento, em que são refletidas situações
menores em detrimento de uma causa bem maior. O epílogo é magnífico pelo senso
revelador, como também fascina o prólogo ao retratar a chegada em sua terra
natal do agonizante escritor com seu segredo pela notícia estarrecedora de uma
situação irremediável. Basta observar a opção por planos-sequência longos com a
câmera estática em cada personagem distante da realidade perturbadora com
closes fechados e com alto grau de profundidade numa narrativa equilibrada, num
tom amargo e seco.
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