sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

É Apenas o Fim do Mundo


Mágoas do Passado

A trajetória do talentoso diretor Xavier Dolan começou muito cedo, com apenas 20 anos já conquistou seu público cativo na extraordinária estreia confessional Eu Matei a Minha Mãe (2009), sobre a relação edipiana e o contemplamento com desprezo. No segundo longa, Os Amores Imaginários (2010), dá uma boa derrapada com um filme mais leve e engajado na causa gay, deixa a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser comprometido com uma análise crítica mais aprofundada. Depois veio Laurence Anyways (2012) mostrando os paradoxos da existência humana ao enfrentar uma situação delicada da troca de sexo para virar mulher através de uma cirurgia, aborda os problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que manter os laços de uma união. Tom na Fazenda (2012) não teve boa repercussão, nem de público e sequer da crítica, porém a penúltima realização, Mommy (2014), reacendeu a luz da inspiração do jovem cineasta de 27 anos.

Agora o realizador canadense volta com seu sexto longa-metragem, É Apenas o Fim do Mundo, que teve lançamento mundial no Festival de Cannes, em maio deste ano. Eis um potente drama intimista com discussões e buscas do passado na essência das aparentes questiúnculas invisíveis que ficaram sem um desenlace a contento. Como que jogadas embaixo do tapete, inoportunamente são retiradas de lá e passam a fazer parte deste vigoroso painel num cenário de frustrações do microcosmo familiar e suas aberrações de futricas que tomam dimensões estratosféricas. Um retrato digno da violência estampada na agressão psicológica pelas palavras ferinas e pontuais como um míssil à procura da vítima que é lançado para alcançar o alvo dentro do convívio pouco estreito daquele núcleo desestruturado, mas que aparentemente vai tocando a vida como se nada de obstáculos os perturbassem. São inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da união resiste pela figura maternal. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos.

Baseado na peça teatral homônima de Jean-Luc Lagarce, a trama aborda o escritor Louis (Garspard Ulliel, convincente na interpretação), longe de casa há 12 anos, retorna para contar sua tragédia pessoal, diante da iminência da morte por decorrência de uma doença terminal. O encontro com os membros familiares é pouco auspicioso. Sente-se sufocado pela receptividade agressiva do irmão, o irascível Antoine (Vincent Cassel, perfeito no papel), mas terá a compreensão da destrambelhada irmã, Suzanne (Léa Seidoux) é afável e ao mesmo tempo problemática pela dependência de drogas, quer ter vida própria, sair daquele lugar interiorano para desabrochar na vida. É importante a presença marcante da mãe (Nathalie Baye), sempre pronta para acalmar os ânimos e contemporizar com suas sacadas sutis e positivas. É uma defensora ferrenha da união e tenta pacificar com seu jeito descolado os diálogos ríspidos entre os filhos. O objetivo daquela reunião torna-se frustrante, pois o preconizado por Louis toma outros rumos e sai do controle completamente, como uma locomotiva que descarrila dos trilhos num declive montanhoso. Principalmente com o temperamental irmão que se acha inferiorizado profissionalmente, uma espécie de brutamonte pseudocivilizado, sempre dá contornos antagônicos nas conversas mais amenas, falta-lhe a sensibilidade que sobra na esposa submissa, Catherine (Marion Cotillard), com seus olhos de interrogação, mas sempre disposta a dar um carinho ao cunhado, considerado como um estranho no ninho pelo marido implacável.

Dolan se aprofunda na temática com sua sensibilidade e hábil sutileza para estabelecer os contrastes familiares, onde pequenas coisas e desavenças de outrora tomam proporções absolutas para inibir o que seria um doloroso relato sobre a iminente morte do visitante, com sua sombria aparência, suas reminiscências que não são entendidas como as indicativas luzes sugeridas pelo protagonista, tais como: ir até o café do aeroporto ou rever a antiga casa abandonada em que passou a infância. O encontro sonhado toma outros horizontes, passa pela rotina de lágrimas por brigas e desacertos de um passado removido com seus fantasmas ressurgindo com sangue nos olhos, e por vezes, a vingança mistura-se a ciúmes camuflados se estabelecendo com garras e tentáculos gigantes. Até o almoço no jardim virou uma sucursal do inferno, pelas idiossincrasias em formato de acusações verbais inusitadas para todos os lados, especialmente do recalcado Antoine, no embalo da bela trilha sonora pop, entre as quais a romena Dragonstea Din Tei, da versão original de Festa no Apê, do brasileiro Latino.

O desfecho com o pássaro inerte no chão, após o toque da meia-noite no antigo relógio cuco de parede, propiciando a revoada premonitória da pequena ave, é uma poderosa metáfora da liberdade pelo fenecimento, em que os mortais rompem as amarras da vida diante da intransigência, no confronto entre vida e morte e as emoções existenciais sobre o progressivo fim do ser humano, remete para a bela cena do estupendo drama Amor (2012), de Michael Haneke, quando a pomba invasora do apartamento é expulsa pelo ancião, representa então a libertação do espírito da mulher doente de seu corpo, como se fosse um cativeiro indesejado. É Apenas o Fim do Mundo tem contundência por ser um filme dolorido pela melancolia de um reencontro turbulento, em que são refletidas situações menores em detrimento de uma causa bem maior. O epílogo é magnífico pelo senso revelador, como também fascina o prólogo ao retratar a chegada em sua terra natal do agonizante escritor com seu segredo pela notícia estarrecedora de uma situação irremediável. Basta observar a opção por planos-sequência longos com a câmera estática em cada personagem distante da realidade perturbadora com closes fechados e com alto grau de profundidade numa narrativa equilibrada, num tom amargo e seco.

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