O Poeta Político
O Chile apresenta seu representante que concorreu à vaga de
melhor filme estrangeiro do Oscar de 2017, porém ficou fora da pré-seleção, mas
disputará o Globo de Ouro. Neruda é o
nono longa-metragem de Pablo Larraín, uma abordagem de um período pouco
conhecido do poeta Pablo Neruda (1904-1973) e sua incursão como senador cassado
na política chilena, bem como seu período no exílio, ao se refugiar no sul do
país. Foi perseguido pelo governo totalitário chileno de 1948, sob o comando do
presidente Gabriel González Videla (Alfredo Castro), por ser um comunista
assumido e com ligações ao governo da extinta União Soviética, embora haja
discordância dos biógrafos sobre a verdadeira trajetória e suas andanças pelo
continente. Neste vácuo de contradições, o diretor dá asas à fértil imaginação
para criar situações pitorescas e ficcionais, embasadas no discurso ao receber
o Nobel da Literatura, em 1971. Menciona na cerimônia estar no lombo do cavalo
e seus sangramentos, com o auxílio de vaqueiros na travessia pela Cordilheira
dos Andes.
Larraín é um cineasta de 40 anos, inquieto e sempre
inventivo nas suas propostas, procura lançar questionamentos profundos sobre
suas realizações, mostra-se preocupado com as distorções das mazelas sociais e
políticas de seu país. Entre os filmes mais conhecidos da filmografia estão: Fuga (2006); o aclamado Tony Manero (2008) com boa repercussão
na 32ª Mostra de São Paulo; Post Mortem
(2010); o festejado pela crítica e aplaudido pelo púbico No (2012), talvez o mais popular deles por retratar a pressão
internacional sobre o ditador Augusto Pinochet, que convoca um plebiscito para
avaliar seu governo sanguinário e a manutenção em 1988. O não à continuidade e
o sim para as eleições diretas em todos os níveis, semelhante ao apelo popular
no Brasil entre 1983 e 1984, com o célebre movimento que mobilizou o país em
torno da redemocratização Diretas Já. É
dele também o badalado O Clube (2015)
e a comentada (e ainda inédita no Brasil) cinebiografia Jackie (2016),
sobre a ex-primeira-dama dos EUA Jacqueline Kennedy, rendendo a indicação de
Natalie Portman ao Globo de Ouro.
Em Neruda a trama gira
em torno do personagem que empresta o nome ao título (Luis Gnecco), que dá
ênfase na perseguição para ser rotulada de selvagem, e assim seja inserido no
desenlace da história, passando da ficção para a realidade. No encalço do poeta
está Oscar (Gael García Bernal), o implacável policial e obstinado servidor do
regime, que deseja provar seus dotes para alcançar a fama definitivamente. Beira
como uma obsessão, numa fórmula mágica e fantasiosa do jogo entre o gato e o rato
na perseguição ideológica ao comunista perigoso que come criancinhas no fundo
do quintal. O filme mostra uma guerra eminentemente particular entre os dois
símbolos do sistema. Um é a alegoria do poder ensandecido; o outro é visto como
um ícone da cultura sufocada que foge para não ser preso e humilhado perante o
povo. São situações emblemáticas entre a caça e o caçador que constroem versões
que melhor convém para cada um dos personagens literalmente dentro de um painel
simbólico de insatisfações de uma realidade cruel. Um depende do outro, eles se
atraem impulsivamente por uma força irresistível, por isto são falsos prisioneiros
dentro de uma teia de aranha, em que não conseguem romper os vínculos.
O mérito do realizador está em não colocar o personagem
central como um herói do povo, contraditoriamente é mostrado como um sujeito
egocêntrico e superior aos demais colegas do partido que seguem uma ideologia
de luta por um ideal, embora extremada em algumas situações. Pablo Neruda é
retratado como um homem que gosta de vida boa, orgias com mulheres e farras
homéricas. Uma abordagem que privilegia seu talento, suas paixões, a vaidade e o
egoísmo contrastando com as convicções políticas. As fantasias e os absurdos
estão na simbiose do intimismo da história bem elaborada pelo diretor, que não
exime seus personagens dos paradoxos e fragilidades existenciais, sequer afasta
as idiossincrasias existentes em cada um deles na inspirada criação psicológica
dos dois: Pablo Neruda e Oscar. A farsa está presente na construção do jogo
pelo poder e as decorrências que dele emergem. É elucidativa a cena da engraçada
esposa de Neruda, a artista plástica argentina Delia (Mercedes Morán), quando o
casal discute cinicamente sobre a importância da pirotécnica perseguição, ela é
lacônica e incisiva ao mandá-lo correr atrás de seu algoz.
O drama, mesclado com traços biográficos e uma narrativa com
clímax policial, tem no roteiro de Guillermo Calderón o foco no rumo dos dois oponentes
principais em tom ficcional, sem traçar datas e evoluções de aspecto verídico. A
poesia é bem adaptada para o cinema, sem se tornar cansativa. Apenas insiste na
repetição do famoso “Posso escrever os versos mais tristes essa noite”, como
forma de registro de um irônico poema clássico. A fotografia é esplendorosa com
imagens poderosas de nevascas de um realismo marcante no epílogo, bem
assessorada pela bela trilha sonora. Neruda
é, antes de tudo, uma boa narrativa do estigma deixado pela cruzada anticomunista,
mas também não se abstém de sua função ao documentar com devaneios a vida de
uma das figuras mais emblemáticas e influentes da cultura do século passado.
Ainda que subverta os fatos ao optar pela encenação farsesca, eximindo-se de um
relato fiel dos acontecimentos, deixa a criatividade cinematográfica ser o
elemento preponderante na essência deste bom filme.
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