sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Elis


Emoção Afinada

O diretor estreante Hugo Prata quando começou a trabalhar no longa Elis, há cinco anos encontrou algumas dificuldades para realizar esta magnífica cinebiografia sobre a maior cantora do Brasil de todos os tempos, para muitos da crítica e do público. Só havia uma biografia na época, agora já são três, pois há um musical que fez sucesso e mais o ora badalado filme deste promissor cineasta. Elis Regina (1945-1982) cantou samba, disco music e consagrou-se definitivamente na MPB. Detentora de uma voz afinadíssima e cristalina, colocava muita emoção na interpretação com seus gestos coreográficos no palco, que a tornou completa pelos seus recursos técnicos. Não se acomodava e nem se conformava com pouco. Sempre quis ser a melhor, batalhou lutou, foi debochada, espezinhada e chamada de “Hélice Regina”- alusão pelos movimentos de braços girando como pás para o eixo no espaço- pelo seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), um mulherengo inveterado que não podia ver um rabo de saia, num casamento corturbado por brigas violentas e algumas baixarias.

Ainda jovem deixou Porto Alegre, em 1964, para se estabelecer no Rio de Janeiro. Uma personagem desafiadora que estava muito além de seu tempo. Uma mulher de personalidade forte, por isto o apelido de “Pimentinha”, logo se impôs no universo machista para viver paixões arrebatadoras. Ao estremecer a relação com o zeloso pai, Romeu (Zécarlos Machado), decide fazer carreira e tocar em frente a fabulosa trajetória artística, deixa seu talento desabrochar no Beco das Garrafas, um lugar em que a boemia carioca predominava. Ali conheceu o badalado empresário da noite Miele (Lúcio Mauro Filho); o coreógrafo norte-americano Lennie Dale (Julio Andrade, que depois foi preso pela ditadura militar; e o arrogante Bôscoli, um defensor obstinado da Bossa Nova. Mas a consagração só viria depois com a canção Arrastão, em 1965, no festejado Festival da TV Excelsior. Os caminhos se abriram para brilhar no programa Fino da Bossa, em que animava com Jair Rodrigues (Ícaro Silva), motivo de galhofa de seus pares por ele “plantar bananeira” no auditório.

O roteiro assinado por Prata, Luiz Bolognesi e Vera Egito faz um retrato fiel da gauchinha que se irrita com os caminhos que a indústria fonográfica quer dar, impondo algumas normas contrárias aos desejos de inovação propostos pela intérprete, uma incansável defensora da boa música popular brasileira, que tem o apoio do crítico Nelson Mota (Rodrigo Pandolfo), o empresário Marcos Lázaro (César Trancoso) e o surgimento em sua vida do tímido pianista César Camargo Mariano (Caco Ciocler), com quem faz parceria profissional e se casa pela segunda vez, tendo mais dois filhos, entre eles Maria Rita, já tinha um do primeiro matrimônio. Sofreu muito com a oposição ferrenha do cartunista Henfil (Bruce Gomlevsky) que não admitiu vê-la nas Olimpíadas Militares interpretando a melodia Madalena. Cria-se um ambiente de animosidade e rejeição por alguns colegas do meio musical, embora sua rápida aparição tenha sido forçada e pressionada pelo Comando Militar com ameaças ostensivas aos seus filhos.

Aclamado no Festival de Gramado como melhor filme pelo júri popular, ganhou também os Kikitos de melhor atriz e montagem. Embora tenha ficado de fora por questão de logística a gravação em Nova Iorque de Elis & Tom, em 1974, no disco em que há o dueto antológico da dupla na canção Águas de Março, que marcou a carreira dos dois, a cinebiografia é uma narrativa em tom de drama que aborda o relacionamento difícil da cantora que origina uma fossa imensurável, ao atrair a antipatia da esquerda e os olhos atentos da censura batendo em sua porta por um governo militar implacável, além da turbulência das ruas pelo golpe de 1964. Sobram elementos que subsidiam uma grande depressão existencial da estrela que fora aplaudida em espetáculos na França e EUA. O desfecho angustiante e dolorido pela morte prematura, aos 36 anos, causada pela mistura de cocaína e álcool, são fatores essenciais para o iminente trágico fim por overdose de uma vida intensa, de altos e baixos, advindos de reveses e vitórias da briguenta estrela e sua força de manter-se de pé nos piores momentos.

Há que se ressaltar em Elis, a magistral atuação de Andréia Horta, de 33 anos, conhecida por personagens secundárias em novelas, atinge o ápice com o maior papel de sua carreira, mesmo que esteja apenas dublando as músicas da trilha sonora, atua com uma impressionante dramaturgia, muito além da expectativa. Não é fácil encarnar a gigante Elis Regina, mas demonstra soberbo vigor físico e psicológico para uma construção despojada que atinge a exuberância com suas gengivas expostas, os trejeitos, o sorriso, o corte de cabelo e o gestual marcante intimista da biografada, uma artista emblemática e sensível, poética e por vezes reveladora. Eis um passeio pela trajetória de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades. Um filme para todas as gerações, tendo como marco histórico a angustiante vida com seus contratempos de uma celebridade. Para ser lembrado e sorvido com sensibilidade as sutilezas sugeridas, lava a alma e deixa os ombros um pouco mais leves as saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira, além do resumo episódico do anacrônico regime ditatorial que passou sem deixar saudades.

Um comentário:

Vera Edler disse...

Melhor filme brasileiro que assisti: excelente direção, fotografia, elenco, destaque para a atuação impecável e comovente da Andreia Horta!A trilha?... Sem palavras pra definir a sensação de ouvir Elis (dublagem perfeita), no som maravilhoso da sala 1 do GUION. Êxtase total, em meio às emocionantes imagens que nos fazem reviver o privilégio de ver essa gauchinha fazendo sucesso e se consagrando como a melhor voz do Brasil. Imperdível!