Mistérios do Passado
O filme canadense Vic+Flo
Viram Um Urso traz para o debate reflexivo não só os mistérios da floresta
com suas armadilhas fatais, mas também enfatiza o processo difícil da busca da
ressocialização de duas ex-prisioneiras que acabaram de sair da cadeia. O
cenário bucólico, mas paradoxalmente assustador, traz a violência que aflora
entre as árvores e o silêncio sepulcral daquele lugar aprazível aparentemente
propício para aquelas duas mulheres que se conheceram quando ainda estavam presas, que tentarão
viver um romance homossexual de duas pessoas maduras e livres de preconceitos
para uma união de quem se apaixona perdidamente e que buscam dias esplendorosos
em novas etapas, fruto do vínculo afetivo e da cumplicidade.
O criativo diretor Denis Côté cria um enredo instigante para
retratar a saga de Victoria Champagne (Pierrette Robitaille), aos 61 anos,
condenada à pena perpétua tem o benefício do cumprimento domiciliar, mas deve
informar suas atividades semanais ao agente judiciário (Marc-André Grandin). Instalada
em uma cabana no meio do bosque, quer começar uma nova vida com a namorada
Florence Richemont (Romane Bohringer), sem saber que a companheira de cela, que
já pagou sua pena, tem ainda uma dívida com uma mulher misteriosa e seu
capanga.
O drama com requintes de suspense mostra Vic querendo fazer
a coisa certa. Tão logo chega na mata encontra um velho tio paraplégico em
estado vegetativo insustentável. Embora queira cuidar dele, há um rapaz e o pai
deste que já zelam e dão todos os cuidados assistenciais ao ancião. Há algumas
escaramuças com divergências sobre de quem é a responsabilidade, mas o enredo
com nuances apimentadas de inquietude centra sua reflexão na relação das
ex-detentas que estão se amando, embora Flo tenha uma recaída por homens na sua
trajetória sexual. A partir daí, começa uma estranha relação entre elas, que
precisam se proteger dos fantasmas do passado que irão perturbar a convivência
harmoniosa.
Eis um filme comovente e brutal pela intimidação implacável
sob o prisma da vingança. Delicado em determinados momentos na sua forma,
corroborado por imagens radiantes para dar beleza na história, por vezes triste
e em e outras que emocionam, pois o vínculo da união é mantido com uma construção
exemplar. Sem acenar com facilidades demagógicas para problemas complexos ou na
defesa de uma causa, ao deixar a força da paixão ser mais forte do que as
sombras pretéritas do terror que rodeiam as criaturas marcadas no presente.
O longa foi premiado com o urso de Prata no Festival de
Berlim e teve boa acolhida nos Festivais de Londres e de Toronto. Agrada ao
público pela intriga fascinante que começa com uma simples história na casa que
simbolicamente é o refúgio e avança para os mistérios e desconfianças que vêm
do frio da floresta e se espalha pelas almas por uma fotografia azulada que irradia
vida e medo naquelas estreitas estradinhas e atalhos que brotam e cortam os
arbustos, apresentam surpresas que crescem no clímax de expectativa para a próxima
cena, num cenário adequado para colocar dúvidas sobre o futuro, com um olhar
sutil para o passado inexplicável e nada recomendável das amantes sonhadoras.
Côté faz referência do urso no título como uma alegoria à
situação engendrada na trama, assim como também se utilizou deste recurso para
se referir ao reino animal em outros longas anteriores, tais como: Curling (2010) e Bestiare (2012). São formas de demonstrar a relação da presa e os
seres irracionais enjaulados nas histórias levadas ao cinema. Dá aos personagens
vida e estrutura psicológica, traçando perfis de forma magnífica num universo
voltado para a reflexão. A violência implícita em Vic+Flo Viram Um Urso, que irá desencadear uma sucessão de fatos
trágicos explícitos, tem uma condução sutil pelo diretor num roteiro engenhoso
e bem típico para se abordar com eficácia o inverossímil proposto, com boa
intensidade para dar um desfecho surpreendente, sem deixar de ponderar a visão
da paixão transcendental da defesa da eternidade como visto em Amor (2012), de Michael Haneke. Um drama
vigoroso com uma estética de filmar em alto nível e reveladora de um passado
impiedoso.
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