quinta-feira, 31 de julho de 2014

Vic+Flo Viram Um Urso














Mistérios do Passado

O filme canadense Vic+Flo Viram Um Urso traz para o debate reflexivo não só os mistérios da floresta com suas armadilhas fatais, mas também enfatiza o processo difícil da busca da ressocialização de duas ex-prisioneiras que acabaram de sair da cadeia. O cenário bucólico, mas paradoxalmente assustador, traz a violência que aflora entre as árvores e o silêncio sepulcral daquele lugar aprazível aparentemente propício para aquelas duas mulheres que se conheceram quando ainda estavam presas, que tentarão viver um romance homossexual de duas pessoas maduras e livres de preconceitos para uma união de quem se apaixona perdidamente e que buscam dias esplendorosos em novas etapas, fruto do vínculo afetivo e da cumplicidade.

O criativo diretor Denis Côté cria um enredo instigante para retratar a saga de Victoria Champagne (Pierrette Robitaille), aos 61 anos, condenada à pena perpétua tem o benefício do cumprimento domiciliar, mas deve informar suas atividades semanais ao agente judiciário (Marc-André Grandin). Instalada em uma cabana no meio do bosque, quer começar uma nova vida com a namorada Florence Richemont (Romane Bohringer), sem saber que a companheira de cela, que já pagou sua pena, tem ainda uma dívida com uma mulher misteriosa e seu capanga.

O drama com requintes de suspense mostra Vic querendo fazer a coisa certa. Tão logo chega na mata encontra um velho tio paraplégico em estado vegetativo insustentável. Embora queira cuidar dele, há um rapaz e o pai deste que já zelam e dão todos os cuidados assistenciais ao ancião. Há algumas escaramuças com divergências sobre de quem é a responsabilidade, mas o enredo com nuances apimentadas de inquietude centra sua reflexão na relação das ex-detentas que estão se amando, embora Flo tenha uma recaída por homens na sua trajetória sexual. A partir daí, começa uma estranha relação entre elas, que precisam se proteger dos fantasmas do passado que irão perturbar a convivência harmoniosa.

Eis um filme comovente e brutal pela intimidação implacável sob o prisma da vingança. Delicado em determinados momentos na sua forma, corroborado por imagens radiantes para dar beleza na história, por vezes triste e em e outras que emocionam, pois o vínculo da união é mantido com uma construção exemplar. Sem acenar com facilidades demagógicas para problemas complexos ou na defesa de uma causa, ao deixar a força da paixão ser mais forte do que as sombras pretéritas do terror que rodeiam as criaturas marcadas no presente.

O longa foi premiado com o urso de Prata no Festival de Berlim e teve boa acolhida nos Festivais de Londres e de Toronto. Agrada ao público pela intriga fascinante que começa com uma simples história na casa que simbolicamente é o refúgio e avança para os mistérios e desconfianças que vêm do frio da floresta e se espalha pelas almas por uma fotografia azulada que irradia vida e medo naquelas estreitas estradinhas e atalhos que brotam e cortam os arbustos, apresentam surpresas que crescem no clímax de expectativa para a próxima cena, num cenário adequado para colocar dúvidas sobre o futuro, com um olhar sutil para o passado inexplicável e nada recomendável das amantes sonhadoras.

Côté faz referência do urso no título como uma alegoria à situação engendrada na trama, assim como também se utilizou deste recurso para se referir ao reino animal em outros longas anteriores, tais como: Curling (2010) e Bestiare (2012). São formas de demonstrar a relação da presa e os seres irracionais enjaulados nas histórias levadas ao cinema. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis de forma magnífica num universo voltado para a reflexão. A violência implícita em Vic+Flo Viram Um Urso, que irá desencadear uma sucessão de fatos trágicos explícitos, tem uma condução sutil pelo diretor num roteiro engenhoso e bem típico para se abordar com eficácia o inverossímil proposto, com boa intensidade para dar um desfecho surpreendente, sem deixar de ponderar a visão da paixão transcendental da defesa da eternidade como visto em Amor (2012), de Michael Haneke. Um drama vigoroso com uma estética de filmar em alto nível e reveladora de um passado impiedoso.

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