sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Riocorrente


Mudanças Simbólicas

Paulo Sacramento estreou no documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), abordando a Casa de Detenção Carandiru um ano antes da desativação, mostra detentos que aprenderam a utilizar câmeras de vídeo e documentam o cotidiano do maior presídio da América Latina. Riocorrente é o segundo longa do diretor que retrata um triângulo amoroso num contexto hermético no cenário da São Paulo fria, sombria e asfixiante que abriga seus personagens tentando dialogar com o espectador, numa narrativa para um público restrito. Levou o prêmio de melhor filme brasileiro na última Mostra de Cinema de São Paulo e de melhor montagem e fotografia no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro do ano passado.

A trama gira em torno de Carlos (Lee Taylor), um ex-ladrão de carros que está insatisfeito com o subemprego de um desmanche de automóveis, mostra-se uma pessoa difícil e violenta nas suas atitudes, principalmente com a namorada Renata (Simone Iliescu), uma jovem misteriosa, sonhadora e romântica. Ela também se relaciona com Marcelo (Roberto Audio), um jornalista cultural antiquado que não aceita a transformação da passagem da máquina de escrever manual para as tecnologias modernas.

O trio desafortunado forma uma relação sufocante, na qual a garota provoca seus parceiros pelo poder de persuasão, causando a explosão sanguínea em um e o abatimento depressivo noutro, numa condição perturbada num contexto rotineiro de uma metrópole ensandecida e repleta de armadilhas. Todos são levados para um limite sensorial de desafios para uma nova realidade. Ainda há o pivete Exu (Vinicius dos Anjos), que Carlos cuida como se fosse um familiar, mas ele passa o tempo todo perambulando pelas ruas da cidade, arranha os carros para demonstrar sua insatisfação com o mundo e observa horizonte como uma alma penada.

Sacramento foi montador e produtor de A Concepção (2005), de José Eduardo Belmonte e Encarnação do Demônio (2007), de José Mojica Marins, editou Amarelo Manga (2002), de Cláudio Assis, Chega de Saudade (2007), de Laís Bodanzky e É Proibido Fumar (2009), de Anna Muylaert. Buscou atores no teatro, desconhecidos do grande público, para dar uma consistência de dramaturgia em Riocorrente- expressão buscada no romance Finnegans Wake, de James Joyce, publicado em 1939, palavra que abre a obra do escritor- para refletir sobre a violência diária que permeia ao longo do filme pela trilha sonora de suspense de Paulo Beto, passa pelo show de Arnaldo Baptista e vai ao encontro da entrevista do artista plástico Marcelo Grassmann.

O longa, misto de drama e ensaio, refuta a trajetória da lógica para alicerçar sua estrutura em metáforas, de certa forma excessivas e que abarrotam o enredo: o leão enclausurado e seus olhos de insatisfação pelas grades como uma ironia da prisão ou o fogo prestes a explodir na cidade que não para, saindo chamas da cabeça do truculento Carlos, são apenas duas para um rol de designações retóricas dentro de uma alegoria sugerida. Do embate dos desejos imaginados pelos personagens surge o imobilismo contrastando com a ânsia de mudanças drásticas no eixo do conflito existencial das relações interpessoais que irão de encontro com a cidade distante dos anseios.

A história proposta pelo cineasta entre as três criaturas foge da linearidade e segue um ritmo circular de decisões sofridas num cenário urbano angustiante que beira ao estímulo feérico, como os semáforos vermelhos que não seguem a ordem cronológica da mudança para o verde, como um indicativo sugerido da transformação que teima em não acontecer para os indivíduos que seguem uma rotina na transmutada pauliceia vivenciando seus pesadelos do trânsito com o pedestre.

Riocorrente não é um filme para um público desacostumado com as alegorias, pois é uma obra de símbolos sem a narrativa clássica. Mas há em suas imagens os tradicionais desmanches de carros, prédios gradeados, rios poluídos, circos com animais enclausurados, através da ótica do triângulo de pessoas sofridas e desatinadas com o futuro. Há um retrato fatídico da indiferença das pessoas com o urbano de uma metrópole caótica. Embora a proposta ouse, o resultado é bem óbvio no seu epílogo, como as frustrações do renascimento das cinzas de fênix. Há méritos evidentes, sem ser tão revolucionário como proposto, mas deixa um resultado satisfatório se comparado com outras produções inócuas, por ser instigante e reflexivo.

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