Mudanças Simbólicas
Paulo Sacramento estreou no documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003),
abordando a Casa de Detenção Carandiru um ano antes da desativação, mostra
detentos que aprenderam a utilizar câmeras de vídeo e documentam o cotidiano do
maior presídio da América Latina. Riocorrente
é o segundo longa do diretor que retrata um triângulo amoroso num contexto
hermético no cenário da São Paulo fria, sombria e asfixiante que abriga seus
personagens tentando dialogar com o espectador, numa narrativa para um público
restrito. Levou o prêmio de melhor filme brasileiro na última Mostra de Cinema
de São Paulo e de melhor montagem e fotografia no Festival de Brasília do
Cinema Brasileiro do ano passado.
A trama gira em torno de Carlos (Lee Taylor), um ex-ladrão
de carros que está insatisfeito com o subemprego de um desmanche de automóveis,
mostra-se uma pessoa difícil e violenta nas suas atitudes, principalmente com a
namorada Renata (Simone Iliescu), uma jovem misteriosa, sonhadora e romântica.
Ela também se relaciona com Marcelo (Roberto Audio), um jornalista cultural
antiquado que não aceita a transformação da passagem da máquina de escrever
manual para as tecnologias modernas.
O trio desafortunado forma uma relação sufocante, na qual a garota
provoca seus parceiros pelo poder de persuasão, causando a explosão sanguínea em
um e o abatimento depressivo noutro, numa condição perturbada num contexto rotineiro
de uma metrópole ensandecida e repleta de armadilhas. Todos são levados para um
limite sensorial de desafios para uma nova realidade. Ainda há o pivete Exu
(Vinicius dos Anjos), que Carlos cuida como se fosse um familiar, mas ele passa
o tempo todo perambulando pelas ruas da cidade, arranha os carros para
demonstrar sua insatisfação com o mundo e observa horizonte como uma alma
penada.
Sacramento foi montador e produtor de A Concepção (2005), de José Eduardo Belmonte e Encarnação do Demônio (2007), de José Mojica Marins, editou Amarelo
Manga (2002), de Cláudio Assis, Chega de
Saudade (2007), de Laís Bodanzky e É
Proibido Fumar (2009), de Anna Muylaert. Buscou atores no teatro,
desconhecidos do grande público, para dar uma consistência de dramaturgia em Riocorrente- expressão buscada no romance Finnegans Wake, de James Joyce,
publicado em 1939, palavra que abre a obra do escritor- para refletir sobre a
violência diária que permeia ao longo do filme pela trilha sonora de suspense de
Paulo Beto, passa pelo show de Arnaldo Baptista e vai ao encontro da entrevista
do artista plástico Marcelo Grassmann.
O longa, misto de drama e ensaio, refuta a trajetória da lógica
para alicerçar sua estrutura em metáforas, de certa forma excessivas e que
abarrotam o enredo: o leão enclausurado e seus olhos de insatisfação pelas
grades como uma ironia da prisão ou o fogo prestes a explodir na cidade que não
para, saindo chamas da cabeça do truculento Carlos, são apenas duas para um rol
de designações retóricas dentro de uma alegoria sugerida. Do embate dos desejos
imaginados pelos personagens surge o imobilismo contrastando com a ânsia de
mudanças drásticas no eixo do conflito existencial das relações interpessoais que
irão de encontro com a cidade distante dos anseios.
A história proposta pelo cineasta entre as três criaturas
foge da linearidade e segue um ritmo circular de decisões sofridas num cenário
urbano angustiante que beira ao estímulo feérico, como os semáforos vermelhos
que não seguem a ordem cronológica da mudança para o verde, como um indicativo
sugerido da transformação que teima em não acontecer para os indivíduos que
seguem uma rotina na transmutada pauliceia vivenciando seus pesadelos do
trânsito com o pedestre.
Riocorrente não é
um filme para um público desacostumado com as alegorias, pois é uma obra de
símbolos sem a narrativa clássica. Mas há em suas imagens os tradicionais
desmanches de carros, prédios gradeados, rios poluídos, circos com animais
enclausurados, através da ótica do triângulo de pessoas sofridas e desatinadas
com o futuro. Há um retrato fatídico da indiferença das pessoas com o urbano de
uma metrópole caótica. Embora a proposta ouse, o resultado é bem óbvio no seu
epílogo, como as frustrações do renascimento das cinzas de fênix. Há méritos
evidentes, sem ser tão revolucionário como proposto, mas deixa um resultado satisfatório
se comparado com outras produções inócuas, por ser instigante e reflexivo.
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