A Solidão
A dupla de cineastas Cao Guimarães e Marcelo
Gomes realizou uma obra fascinante neste O
Homem das Multidões, sob o ponto de vista da aproximação de dois seres
humanos num contexto de solidão e melancolia na metrópole de Belo Horizonte. Os
diretores retratam um drama intimista com diferenças e afinidades que irão se
aproximando com o tempo, no contraste da lente de filmar que os mantêm sempre afastados
da realidade da cidade grande. O painel irá refletir os dois personagens centrais
próximos fisicamente e distantes no aspecto emocional e psicológico, abalados
pelas circunstâncias das respectivas presenças de um e de outro, onde se
confunde amor com amizade. Guimarães buscou inspiração no conto homônimo de
Edgar Allan Poe, para fechar a Trilogia
da Solidão, que iniciou com os documentários Alma do Osso (2004) e Andarilho
(2006).
O filme está bem alicerçado na estrutura dos protagonistas
Juvenal (Paulo André- de sóbria interpretação) e Margô (Silvia Lourenço) na
lógica da solidão, como bem explorado na singular película argentina Medianeras (2011), de Gustavo Taretto, onde
dois vizinhos solitários que não se conhecem, embora morem no mesmo prédio, mergulhados
no vazio existencial no mundo da era virtual e moderna. Há também a mesma
solidão que tenta aproximar dois vizinhos pelo impasse da construção de uma
janela, em outro longa argentino O Homem
ao Lado (2009), de Mariano Cohn e Gastón Duprat. Ou ainda no comovente Ela (2013), de Spike Jonze, quando a
relação amorosa explode de um homem por uma voz feminina computadorizada que
passa a ser sua namorada, aborda as atitudes de pessoas, que cada vez mais
estão fora do realismo do mundo, sem chão e sem perspectiva.
A trama tem de um lado Juvenal, um metroviário que está
sempre à procura de um foco no horizonte perdido, chega a dormir no controle da
cabine, sendo salvo pelo “homem morto”, um dispositivo que alerta para os
esquecidos para evitar acidentes. Tem a rotina de um frequentador contumaz de
lugares abarrotados por pessoas, ao andar repetidamente nos mesmos ambientes
como um autômato invisível na multidão sempre incomunicável. Do lado oposto tem
Margô, a colega que controla o fluxo dos vagões e que está de casamento
marcado, através de um fortuito romance na internet, convida o colega para ser
seu padrinho na cerimônia, na busca da felicidade plena embalada e referendada
pela trilha sonora.
O longa avança na narrativa, diante do convite do
apadrinhamento feito pela moça para o rapaz, sendo que a partir deste momento
único há uma aproximação pela amizade existente entre ambos, que parecem
assustados com a situação inusitada que abre uma fresta para um vínculo mais
profundo, que teima em
resistir. Não há ação, apenas o silêncio com os ruídos
externos que predominam os encontros, como bem enfatizado no excelente O Som ao Redor (2012), de Kleber
Mendonça Filho, ao mostrar o coronelismo e seu domínio territorial no bairro,
sem perder a poesia com sensibilidade sensorial dos sonhos convulsivos que
poderão ser realidade. O Homem das Multidões
cresce ainda mais no retrato fiel e instigante da solidão, como no estupendo Encontros e Desencontros (2003), de
Sofia Coppola, paralisante e arrebatador na abordagem de dois personagens
sozinhos o tempo todo, sofrendo com o fuso horário em Tóquio, não conseguem
dormir e se encontram por acaso, no bar de um hotel de luxo. Ou no inesquecível
episódio Shaking Tokio, dentro do
longa Tóquio (2008), do sul-coreano
Bong Joon-ho, num dos mais devastadores relatos de solidão humana, onde um jovem
está enclausurado em sua própria casa há mais de 10 anos, isolado do mundo e
das pessoas, exceto quando recebe o entregador de pizzas.
O drama é realizado num clímax claustrofóbico que sugere a
prisão dos protagonistas, em que os diretores inovam na filmagem dentro de um
retângulo de imagens 3x3, num formato de isolamento por enquadramento com
planos distantes e bastante contraplanos para realizar o espaço do quadro a
quadro. O espectador pode então lançar seu olhar de preocupação e intervir como
se fosse participante da angústia destruidora. As visualizações do casal são
ambientadas por uma bela fotografia esmaecida em tons pastéis e com visão de
dor e tristeza, dentro do silêncio onipresente, quase nauseante pela falta da
interação, com as subidas e descidas de escadas rolantes e o foco vai ao
encontro das pessoas nos seus fluxos rotineiros, entre elas observar de casa ou
sentar no banco do parque para assistir os pedestres andando em remoinho.
Os diretores enfatizam com pertinência Juvenal fazendo
sempre as mesmas coisas: caminha na multidão, ouve rádio, come e bebe, faz a
limpeza da residência e reclama instintivamente por sussurros. Uma rotina
silenciosa e martirizante sob o prisma da normalidade, diante da alma que
parece doer sempre e o sentido da vida inexiste como objetivo para a
convivência social. Sobra pouco de vida para aquele existente vazio urbano desalentador,
sem perspectiva e pessimista, para duas pessoas caladas e retraídas pela
inércia, ausentes do mundo real e inevitavelmente melancólicos e aniquilados pela
imensidão da metrópole, neste magnífico ensaio reflexivo sobre a solidão, um
dos grandes males dos tempos modernos.
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