sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Trapaça


Os Vigaristas

David O. Russel é um seguidor inspirado no estilo de Martin Scorsese, dirige e assina o roteiro com Warren Singer no filme Trapaça e obtém um resultado convincente pela profundidade. O longa recebeu dez indicações e é um forte concorrente ao Oscar, entre as quais: filme, diretor, roteiro, ator e atriz (Chistian Bale e Amy Adams), os coadjuvantes (Bradley Cooper e Jennifer Lawrence). No Globo de Ouro levou três estatuetas: melhor comédia, atriz e atriz coadjuvante no gênero. O diretor tem em seu currículo a razoável comédia romântica recauchutada O lado Bom da Vida (2012), numa abordagem no melhor estilo dos filmes românticos de Hollywood, retratando o encontro de duas pessoas problemáticas com dramas pessoais significativos, mas que querem reerguerem-se de traumas do passado, que rendeu o discutível Oscar a Jennifer Lawrence.

Scorsese com O Lobo de Wall Street (2013) abordava um jovem aspirante a corretor da bolsa de Nova Iorque, que faturou bilhões de dólares em golpes financeiros, manipulando com discursos eletrizantes e que levou investidores à bancarrota, por ensinamentos decorrentes de uma oratória convincente, num cenário de iates e lindas mulheres, tudo regado com champanhes e iguarias nas festas e encontros que se tornavam um transe beirando à Sodoma e Gomorra. Os crimes do colarinho banco são enfocados de forma cômica e extravagante numa história com componentes de drogas e extrapolando todos os limites de regras normativas, através de pilantragem para sonegar impostos. Realizado com uma narrativa frenética que se confundia com uma animação infantil, com um humor nada sutil e excesso de palavras chulas, com muita gritaria no desenrolar de três horas. Tornou-se massificante uma obra que poderia ser reduzida pela metade, num erro crasso de edição.

O discípulo supera o mestre na homenagem direta e sem rodeios nesta inteligente comédia, com uma reconstituição magnífica de cenário, com um figurino exemplar e irretocável. O longa retrata fatos reais de uma investigação entre 1978 e 1980 pela FBI, nos EUA, recriando parcialmente o escândalo na famosa operação Abscam, tendo levado à justiça muita gente importante, entre os quais políticos poderosos de conceituada fama. Segundo eles, em suas defesas pífias, alegavam ter recebido incentivos financeiros de um xeique para custear obras para o povo, na realidade uma criação fantasiosa para despistar as investigações.

A estrutura criada por Russel é a mesma de Scorsese, como uma dinâmica construtiva de um cinema de alta voltagem. Uma narrativa sem subterfúgios que vai direto ao ponto, no âmago da falcatrua, mostrando o imbróglio sem tintas coloridas ou alegorias histéricas. Nisto Trapaça dá de goleada em O Lobo de Wall Street, pela embalagem de um cinema realizado com todo requinte e convencimento da vigarice, sem perder a elegância e a classe. É bem verdade que Scorsese se faz presente, pois seu excelente Os Bons Companheiros (1990) serve de inspiração máxima para o homenageante deitar e rolar na esteira da corrupção passiva e ativa dos personagens. Havia o garoto que contava a sua história do sonho em ser gângster, começando a carreira aos 11 anos e se tornando protegido de um mafioso (Robert de Niro- que também é um temido mafioso com Russel) em ascensão, envolve-se em golpes cada vez maiores e acaba se casando com sua amante. Conquista prestígio, se envolve com o tráfico de drogas, prática grandes roubos e ganha muito dinheiro, mas os agentes federais o perseguem, seu destino pode mudar a qualquer momento.

Trapaça também tem a trama no mundo do crime, envolve o espectador por ter uma edição enxuta, com uma trilha sonora adequada e condutora numa trama bem elaborada por um diretor que consegue obter resultados surpreendentes de atores limitados, demonstrando domínio de elenco e extraindo uma química renovada de todos eles, sem exceção. Vê-se Irving Rosenfeld (Bale- perfeito como canastrão barrigudo, até sua peruca dá um desenrolar com eloquência) é um grande trapaceiro que trabalha junto da sócia e amante Sydney Prosser (Adams- está irresistível com suas madeixas, além da pose sedutora). O casal de vigaristas é forçado a colaborar com o inescrupuloso agente do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper), sendo infiltrado no perigoso mundo da máfia comandado por Victor Tellegio (De Niro). Numa situação dúbia e arriscada para fisgar os corruptos, o trio se envolve na política do país, através do falso moralista e candidato populista Carmine Polito (Jeremy Renner). Tudo parece dar certo num plano bem articulado, até surgir a esposa de Irving, Rosalyn (Lawrence- derrama charme e está melhor do que quando ganhou o Oscar), para que as regras do jogo comecem a mudar e causar surpresas no roteiro, deixando todo mundo em maus lençóis. Numa sacada digna de um bom aluno que demonstra ter aprendido bastante com o mentor.

Se a estrutura de O Lobo de Wall Street era muito semelhante ao filme Cassino (1995), como se Scorsese remasterizasse o tema numa refilmagem com cenários diferentes, Russel inova seus personagens no universo da safadeza dentro da ilegalidade e da proteção do já mencionado Os Bons Companheiros, dando frescor aos seus anti-heróis, sem ranços moralistas ou comprometimentos com mocinhos e bandidos. Mesmo não sendo um filme inesquecível, tem consistência construtiva na estrutura de personagens de carne e osso, com problemas psicológicos evidentes, como Rosalyn; ou físicos apresentados por Inving; de histrionismo sem escrúpulos do agente do FBI. Uma comédia provocadora, escrachada sem ser exagerada, com desenvoltura de um enredo picante de trapaceiros bem ou mal intencionados, diante de um capitalismo que permite fraudes e desvios, estreitando a tênue linha divisória da legalidade para o crime, vistas por imagens e soluções num ritmo equilibrado.

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