sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Retratos Fantasmas

 

Viagem ao Passado

O cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho estreou com o cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio. Refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belas moradias bem protegidas. Depois viria causar polêmica com Aquarius (2016), diante do protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes. Virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O terceiro longa, Bacurau (2019), dividiu a direção com Juliano Dornelles, e ganhou o prêmio do Júri no Festival de Cannes daquele ano. Mostrou arrojo ao criar um inusitado faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata.

Mendonça está de volta com este extraordinário documentário Retratos Fantasmas, que dialoga com a ficção quando divide em capítulos, faz incursões num roteiro ficcional, e flerta com uma obra de características de puro ensaio. Reflete a preocupação do cinema autoral com a temática do cotidiano das salas de cinema de calçada sendo invadidas pelas farmácias, igrejas e a especulação imobiliária no desenvolvimento urbano acelerado. Ambientado no centro de Recife como uma espécie de personagem principal através do imaginário e das muitas memórias, durante o século XX. Ao longo de uma hora e meia, faz colagens de 60% de imagens de arquivos públicos, fotografias, vídeos e registros impressionantes em movimento, sendo a grande maioria de seu próprio acervo. Explora a história humana e o histórico centro da cidade ao pontuar seu enredo a partir das salas que eram pontos de referência e atraíam a população ditando comportamentos de uma época. Levou sete anos para o trabalho de pesquisa até concluir a obra e fazer sua estreia internacional no Festival de Cannes deste ano, com o lançamento nacional se efetivando ao abrir, fora da competição, o 51º. Festival de Gramado. Foi selecionado para participar dos festivais de Toronto e Nova Iorque, sendo também forte candidato para representar o Brasil na disputa do Oscar Internacional de 2024.

O filme tem como ponto de partida a vista da janela da casa do cineasta que retrata com delicadeza o lado familiar e carinhoso, onde morou por mais de quarenta anos, desde a infância com seus pais até se casar, e lá permaneceu por mais um bom tempo. No prólogo, o diretor convida o espectador para entrar dentro do imóvel em que viveu, filmou, e produziu várias de suas realizações. Enfatiza as farmácias, igrejas e as novas construções desenfreadas que só visam lucros, pouco se importando com a cultura, tomando o lugar das salas de cinema de rua. A narrativa traz no bojo um novo realismo da cidade onde nasceu, do cinema regional e do nacional. Uma temática universal dos grandes centros urbanos do mundo, porque ali estão estampados os novos tempos de qualquer capital do país- Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e as demais- que se renovam para uma adequação de novas demandas. Deixa para trás um cotidiano retrô que virou fantasmas de lugares e pessoas que por lá passaram e ficaram suas lembranças que se eternizaram nesta comovente viagem que traz um pouco de amargura nostálgica até para as gerações mais novas que não vivenciaram estes tempos vistos como um momento especial dos cinemas de calçada.

As realizações anteriores de Mendonça já abordavam com sensibilidade e sutileza a importância dos lugares nas histórias, tanto em Som ao Redor no dia a dia de uma dona de casa cansada com seus dois filhos, típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha. Já Aquarius retratava a especulação imobiliária pela ganância especulativa sem limites. Trazia a exacerbação pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio. Chegou ao cúmulo de plantar ninhos infestados de cupins para demonstrar a força do poder como ameaça explícita à integridade física da proprietária. A realocação e a modernização ditadas como regras de soluções pragmáticas chocam-se com o bem-estar e o sagrado direito da livre definição, ainda que seja tachada de retrógrada para simbolizar sua liberdade de decisão, contrapondo-se ao que é salutar para o destino da protagonista traumatizada pelas cicatrizes decorrentes de um câncer. Retratos Fantasmas é uma maneira continuada dos enredos destes dois magníficos filmes anteriores de Mendonça, como o fechamento de uma trilogia notável sobre uma cidade que perde sua identidade. Aponta para a imposição do progresso desvairado dominando o contexto ao demonstrar que os áureos tempos ficaram para trás num retrato dos contrastes de uma realidade de anomalias e distanciamentos ao nosso redor num filme que simboliza o resgate da história.

Os sonhos convulsivos de outrora das salas de cinema de calçada que perderam seus espaços estão nesta estrutura narrativa em off do diretor de inspirada criatividade, que sai ileso ao não cair na obviedade do lugar comum e nas armadilhas melodramáticas. Ainda que haja um viés saudosista pelos elementos caracterizadores envolventes de memórias individuais e coletivas das imagens dos letreiros premonitórios da política brasileira, bilheterias acanhadas e os velhos projetores com rolos de fitas, fica uma contundente marca plástica de rara qualidade neste paradigmático documentário sobre o contraste dos novos tempos com o passado dos espaços das salas de cinema de rua que deixaram uma lacuna emocional ao serem transferidos para dentro de shoppings. Há sugestões, em algumas cenas, que lembram o clássico Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, como na cena admirável com os lamentos do projecionista. O epílogo nos remete para dois filmes do cineasta iraniano Jafar Panahi: Taxi Teerã (2015) e Sem Ursos (2022), bem como o motorista angustiado em Taxi Driver (1975), dirigido por Martin Scorsese, onde Mendonça aparece dentro de um carro, em frente às câmeras, faz um personagem ao lado de um ator interpretando um motorista de aplicativo e suas travessuras invisíveis, numa incrível sequência ficcional com insinuações de realidade na essência. Registra com delicadeza e uma dose bem-humorada para suavizar o peso melancólico cortante e doloroso até o desfecho destes densos fantasmas pretéritos. Uma abordagem explorada profundamente como uma obra maior no cenário nacional, que deverá estar nas listas dos críticos nos 10 melhores filmes do ano.

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