sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você

 

Dois Gênios

O veterano Nelson Pereira dos Santos dividiu a direção com a neta de Tom Jobim, Dora Jobim, ao realizar com méritos o documentário A Música Segundo Tom Jobim (2012). Optou pela boa música e o acervo fotográfico da carreira deste cultuado cantor e compositor brasileiro que conquistou o mundo musical e se consagrou como um dos ícones de todos os tempos, cantando em português e muitas vezes também em inglês, num formato de videoclipe essencialmente com música nas diferentes vozes e interpretações em vários idiomas, entre eles o italiano, o francês e o inglês, inclusive em parceria com Frank Sinatra. Já o diretor Hugo Prata quando começou a trabalhar no longa-metragem Elis (2015), encontrou algumas dificuldades para concluir esta magnífica cinebiografia sobre a maior cantora do Brasil de todos os tempos, para maioria da crítica e parte do público. Elis Regina cantou samba, disco music e consagrou-se definitivamente na MPB. Detentora de uma voz afinadíssima e cristalina, colocava muita emoção na interpretação com seus gestos coreográficos no palco, que a tornou uma cantora completa pelos seus recursos técnicos. Mulher de personalidade forte, por isto o apelido de “Pimentinha”, logo se impôs no universo machista para viver paixões arrebatadoras. Sempre quis ser a melhor, batalhou lutou, foi debochada, espezinhada e chamada de “Hélice Regina”- alusão pelos movimentos de braços girando como pás para o eixo no espaço- pelo seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), um mulherengo inveterado, em um casamento conturbado por brigas violentas e algumas baixarias.

Agora Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay dividem a direção para unir em Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você estas duas estrelas do mundo musical. Contam através de vídeos caseiros e imagens da gravação do histórico álbum lançado em 1974, que juntou a cantora Elis Regina com Antonio Carlos Jobim (popularmente conhecido como Tom Jobim). Gravado em mais de cinco horas por quase 50 anos pelo produtor e empresário da cantora, à época, Oliveira apresenta os registros em Los Angeles, nos Estados Unidos e diz: "Chegando lá eu percebi que eu tinha que filmar aquilo. Percebi que eu estava diante de um evento histórico". O filme retrata uma variedade de materiais inéditos, que permaneceram guardados, e que mostram todos os bastidores com os conflitos e as diferenças da dupla de gênios. Por muito pouco o álbum não foi interrompido, mas que só foi até o fim graças aos diálogos ásperos, às vezes rancorosos e em outros com sorrisos amarelos para obter algumas concessões dos dois. O resultado não poderia ser melhor nestes momentos maravilhosos para deleite do espectador nesta imersão sensorial, com a bela fotografia de Fernando Duarte e o ótimo roteiro de Nelson Motta. Apesar das tensões musicais, a história fez estes registros singulares de uma das mais belas interpretações que dá para classificar como extraordinária, em um momento divino e satânico, onde Tom manipulava as peças com seu estilo clássico, por vezes intransigente, como nos arranjos das canções realizadas por César Camargo Mariano, marido à época da cantora, que não aceitava o piano elétrico do músico.

Eis um dos maiores, se não o melhor documentário musical de todos os tempos realizado no Brasil. Entre tapas, beijos e ciúmes se fez um histórico disco com a obra-prima Águas de Março, interpretada com elegância sóbria pelos dois titãs em um dueto antológico, é uma das canções brasileiras mais regravadas. O filme conta o início turbulento dos trabalhos, os acertos e a consagração final de um trabalho impecável. Os diretores conseguem com habilidade fugir da realização chapa branca. Para isto, dá o direito da plateia sentir a fogueira de vaidades nos bastidores. Em uma das cenas,Tom aparece num programa de televisão onde é perguntado, mas nega, se é verdade que teria dito: “Esta gaúcha ainda cheira a churrasco”. No contraponto, Elis teria sugerido a Tom que: “Bossa Nova é para quem não sabe cantar”. Um filme que instiga e arrepia, pois ninguém levanta da sessão de cinema até o último crédito ao som da inesquecível canção. Fica a sensação de lembrar com sensibilidade as sutilezas sugeridas, os antagonismos, e por fim o êxtase. Para lavar a alma e deixar os ombros mais leves, e sorver as doces e saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira deste filme que conquistou a crítica e foi reconhecido como o Melhor Filme Brasileiro na 46ª. Mostra de São Paulo do ano passado, onde recebeu elogios e aplausos merecidos. Sua jornada começou com exibições especiais no Festival do Rio 2022. A produção também atraiu atenção internacional ao ser apresentada no Marché du Film do Festival de Cannes. Representará o Brasil no Oscar de 2024 na categoria de Melhor Documentário.

Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você mostra com elegância admirável as alfinetadas, ironias, sarcasmos, irreverências e até lágrimas, tudo com delicadezas essenciais. André Midani, Roberto Menescal, João Marcelo Bôscoli Filho, filho de Elis, e Beth Jobim, filha de Tom, manifestaram suas opiniões sinceras ao serem entrevistados. Uma obra para todas as gerações, tendo como marco histórico a gravação do célebre disco em 1974, que humaniza os dois personagens centrais diante da magnânima superação que resulta no profundo apaixonamento artístico entre eles. Vale ressaltar que a música servia de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para deixar na tela como reflexão aquele período sombrio. Não é um documentário somente para os fãs de Tom e Elis, mas para todos os apreciadores do refinamento da música de qualidade, sem gritos e histerias, apelações ou grotescas baixarias. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos. Para os que não gostam deles, ao assistir poderão ter a grande chance de mudar alguns conceitos equivocados. Sobre os que estão em dúvida se gostam ou não, dificilmente deixarão de aderir e cantarolar. Ainda que não ganhe festivais, talvez nem ousasse tal intenção, mas ficará registrado na memória o inesgotável poder de criação, pois os gênios nunca deixam secar a fonte e estão sempre presentes para seus admiradores contumazes e até possíveis detratores.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você" é uma carta de amor para todos que apreciam a verdadeira arte da música brasileira.