quinta-feira, 14 de março de 2019

Cafarnaum



Filhos e Pais

Em coprodução com os EUA e a França, vem do Líbano o aceitável drama familiar Cafarnaum, representante deste país na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar de 2019. Este é o terceiro longa-metragem provocante de Nadine Labaki, onde também atua como a advogada do menino protagonista (embora em uma participação meteórica, dá para perceber sua beleza estonteante de grandes olhos verdes e cabelos negros compridos). Ela já havia encantado com a comédia dramática Caramelo (2007), filme de estreia atrás das câmeras sobre os problemas pessoais de cinco mulheres que tinham por referência seus trabalhos e encontros assíduos num salão de beleza, em um aconchegante bairro de Beirute, onde conversam francamente. No segundo longa-metragem, E Agora, Aonde Vamos? (2011), em que venceu o Prêmio do Público no Festival de Cinema de Toronto, abordou seu país devastado pelas constantes guerras como pano de fundo para a reconstrução, sob o abrigo do fanatismo religioso e os conflitos entre cristãos e muçulmanos que desencadeiam situações de beligerância frequente. Lá existia um grupo de mulheres numa aldeia isolada e perigosa que se uniram para pacificar os homens se matando como bestas humanas disfarçados de idiotas guerreiros.

Sempre com uma temática voltada para o Líbano, Labaki é a responsável pelo dinâmico roteiro escrito em parceria com Khaled Mouzanar neste seu terceiro longa-metragem, sobre os perigosos desatinos pelas rupturas dos laços que unem os respectivos membros familiares, além de mostrar os problemas de imigração e o descontrole da natalidade. A trama enfatiza o personagem central Zain (Zain Al Rafeea- de interpretação estupenda, carrega o drama quase que sozinho), um menino de doze anos que leva nos ombros uma gama de responsabilidades. Além de trabalhar numa mercearia, ele cuida de vários irmãos menores no deplorável cortiço em que convive com os pais sempre ausentes. O filme adquire um clímax de beligerância e tristeza, tão logo a irmã dele, uma garotinha de onze anos é vendida pelo pai em troca de algumas galinhas para um pequeno comerciante da região periférica de Beirute. Não há escolha, apesar de todos os esforços do irmão para salvá-la daquele crime brutal, ela é forçada a se casar com aquele asqueroso homem bem mais velho. O menino de temperamento forte e maturidade precoce para a idade não se conforma, esbraveja, explode de raiva, briga com os pais e abandona o núcleo familiar deteriorado pela miséria e da falta de dignidade mínima.

A cineasta libanesa retoma sutilmente a temática feminista, ao retratar a mãe que nada pode fazer para defender a filha menor, por ser totalmente submissa naquele lugar extremamente machista e com ausência de voz à mulher, numa cena comovente e arrebatadora sob o ponto de vista do olhar feminino, características marcantes da realizadora. Tema pelo qual foi enfatizado de maneira mais branda no primeiro ficcional Caramelo. Sem perder o foco do enredo, que é a fuga do garotinho e sua trajetória amarga pelas ruas junto aos refugiados com problemas de documentação e outras crianças que também sofrem, porém por outras contingências, como dos pais que são presos, ficam à mercê perambulando com fome numa caótica situação sem uma luz no futuro. O destino ainda irá colocar um bebê em seu caminho, em que o fará cuidar sozinho dele, tendo em vista o desaparecimento da mãe, uma imigrante ilegal da Etiópia. Na realização anterior, E Agora, Aonde Vamos?, a tragédia libanesa era vista de uma forma não menos cruel, com conflitos permanentes sobre a intolerância viciada dogmática como algo abjeto e inconsequente. Assim como no filme de estreia, as personagens flutuavam e lançavam as conversas sem preconceitos ou mentiras para um questionamento amargo, em que buscavam o sentido do cotidiano da vida num contexto dominado pelos homens.

O ritmo ágil e nervoso da câmera com alguns excessos no prólogo, a fotografia bem caracterizada com a aproximação da câmera nos rostos durante a grande maioria das cenas, fechando as imagens, retrata os espaços adequados e angustiantes da dor, da tristeza e do inconformismo pelo olhar das crianças em maioria na trama. Opta-se por planos curtos e entrelaçados, reforçando a dinâmica da narrativa. Embora haja algumas derrapadas para o melodrama piegas na fase inicial do drama, logo a diretora se recupera e conduz com boa imparcialidade, afastando os proselitismos que rondam. Segue uma linha narrativa que lembra pelas semelhanças, embora bem aquém e distante do genial François Truffaut na obra-prima Os Incompreendidos (1959) sobre as relações familiares de um menino expulso de casa e levado pelo padrasto até um Centro de Correção de Menores. Ou ainda do magnífico O Pequeno Nicolau (2009), de Laurent Tirard, sem esquecer o próprio Truffaut que viria mais tarde com outra obra-prima Na Idade da Inocência (1976). Já antes Ives Robert, com sua memorável comédia dramática explorou com acidez, através do longa Guerra dos Botões (1962), mas foi Jean Vigo que celebrizou a rebeldia com o extraordinário Zero de Conduta (1933), possivelmente o primeiro a tratar com toda a veemência a transgressão e a opressão infantil.

Cafarnaum tem no enredo as imigrações clandestinas sendo apresentadas como uma mazela do caos social de poucas soluções práticas. Um painel de personagens em estado de penúria para uma constatação de miséria, sem que haja algum representante da classe mais abastada neste universo composto de crianças famintas e abandonadas, onde os refugiados não escapam da polícia e são presos aos magotes, além de uma boa parcela de comerciantes traficarem de tudo, inclusive bebês, numa retórica que irá esbarrar na fronteira do maniqueísmo. Apesar de algumas irregularidades, não deixa de ser um drama apreciável pela sensibilidade em retratar a ausência do carinho nos diálogos reveladores, ou o amor esquecido, bem como a ternura minguada, em uma evidente crítica ao sistema e aos métodos machistas superados de uma sociedade. Vislumbram-se as maneiras pouco éticas pela falta de diálogos familiares como elementos básicos e frágeis apontados. É marcante a cena do filho no tribunal se defendendo pelo desatino praticado em nome da dignidade humana. Mas ele não perderá a oportunidade de fazer a denúncia que incriminará os pais pela falta de controle da natalidade. Um desfecho pouco convencional, com boas doses de pieguismos e manifestações positivas, que irão ao encontro dos anseios do espectador sedento por justiça social.

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