terça-feira, 12 de março de 2019

Raiva



A Vingança

O paulistano Sérgio Tréfaut faz carreira em Portugal, onde está há muitos anos. Foi ex-assistente de vários diretores lusitanos, estreou com o curta Alcibiades (1991), realizou os documentários Fleurette (2002), Lisboetas (2004) e A Cidade dos Mortos (2009), tendo no longa-metragem Viagem a Portugal (2011) a primeira experiência na ficção. Voltou para o gênero documental com Alentejo, Alentejo (2014), quando foi devidamente reconhecido internacionalmente ao retratar com dignidade dezenas de grupos amadores que se reuniam regularmente na região que dá nome ao filme, ao sul do Rio Tejo. Ali, ensaiavam antigos cantos polifônicos para improvisar modinhas contemporâneas, numa bela viagem musical por um modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes. Divulgou o “cante” que nasceu nas tabernas e nos campos, entre camponeses e mineiros, repassado ao longo de várias gerações como um criativo e real lamento choroso das canções. Nas últimas décadas, novos grupos apareceram na periferia de Lisboa e em diversos países para onde os alentejanos emigraram. Miguel Gomes realizou o excelente similar Aquele Querido Mês de Agosto (2008), com filmagens em Argamil, na região central, próximo de Coimbra.

Tréfaut retoma à ficção depois da única tentativa com Viagem a Portugal para construir este instigante drama familiar social Raiva, ambientado em 1950, nos remotos campos do Baixo Alentejo, no Sul do país português, pelas lentes de Acacio de Almeida na fascinante fotografia em preto e branco com contrastes no tom acinzentado. Inspirou-se no livro Seara do Vento, lançado em 1958, de autoria do escritor Manuel da Fonseca. O longa acompanha a saga de uma família extremamente pobre na área rural, no qual os campos estão maltratados pelos ventos e a seca, em uma desoladora miséria de fome e humilhação que assolam aquela comunidade em frangalhos. A violência brota pelos conflitos entre camponeses e os poderosos donos da terra. O prólogo, que já antecipa o epílogo e afasta a expectativa sobre o desfecho, é uma exposição arrebatadora com dois violentos assassinatos em apenas uma noite de brutal descarga emocional após uma grande injustiça social decorrente de outra inusitada morte.

O mistério que se espalha pelo lugarejo é quanto à origem do crime que toma conta daquele inóspito lugar de repressão. A vingança não é gratuita, logo o enredo começa a desenrolar o grande novelo do enigma. Diz o narrador: “nas terras mortas onde não há pão, os pobres nascem pobres e os ricos nascem ricos”, que até poderia ser um resumo da narrativa da proposta sobre o realismo cru desta trama arrebatadora. No centro da família patriarcal de camponeses, sem trabalho e sem alimentos, está Palma (Hugo Bentes), um homem taciturno e com boa autoestima, acaba por envolver-se em pequenos contrabandos para dar sustento à família. É um inconformado com as injustiças e as perseguições ali existentes, principalmente contra ele. Por isto anda sempre com uma espingarda para se defender, já sua mulher (Leonor Silveira) sofre com o filho deficiente físico e mental, além das incursões da filha (Catarina Wallenstein), uma ativista sindical em busca de condições melhores para a criação de trabalhos, diante dos infortúnios que se espalham pelos lares de desempregados em confronto aberto às oligarquias representativas do poder.

Uma obra que tem o mérito de obter algum lirismo, porém sem cair na armadilha melodramática, com harmonia de equilíbrio na difícil construção sem pieguismos baratos. Em ritmo de faroeste contido enfatiza as autoridades sendo manipuladas pelo ricaço e vilão da história, Reis (Diogo Dória), o pivô das desavenças com amplo domínio e influência na região pela sua posição socioeconômica abastada. Responsável pelo cerco ao protagonista contestador que irá deteriorar as relações e tornar iminente a luta de classes naquela região. Nos diálogos secos e diretos, com alguns rastros nos cânticos da trilha sonora, percebe-se o ardor com muita dor, ao falar das necessidades prementes para matar a fome e escapar da morte que se aproxima, sempre com as imagens pelos olhares perdidos no horizonte à procura de quimeras no universo. Manoel de Oliveira também fazia pequenas elucubrações pela cantoria folclórica como se vê no longa O Estranho Caso de Angélica (2010), em que a música era cantada em forma de fado pelo capataz para os lavradores num trabalho subalterno e arcaico. Determinados em aplainar as terras dos vinhedos com as foices para carpir e ceifar vidas, estampadas nas fotografias que emolduravam o painel, através do canto melódico e triste por uma melancolia prenunciando o instinto da partida definitiva. Tréfaut segue o mestre inspirador ao criar um clima hostil e pouco saudável, misturando o realismo com o imaginário, num exercício mental delicioso dos limites propostos da ficção para um tensionado e abrangente drama social.

O abutre destroçando o coelho e a tentativa de proteção do roedor pelo cunhado alcoólatra soa como uma antecipação alegórica da tragédia anunciada prestes a explodir. São sinalizações indicadas ao espectador numa linguagem quase que teatral para os grandes espaços ornamentados de raros objetos e móveis, exceto os pequenos tocos de madeira representando cadeiras e uma frigideira para elaboração das poucas refeições. Raiva é um filme preocupado com o povo que sofre com o desemprego torturante que reina naquela região em estado de penúria ultrajante. Num formato clássico e austero, ao melhor estilo de Manoel Oliveira, com planos fixos e simétricos, além de usar minimamente os recursos da trilha, com o intuito de não induzir na reflexão da plateia mais atenta e comprometida com o bom cinema, exceto em momentos propícios e pontuais da narrativa que focou na vingança. Há os questionamentos nas entrelinhas sobre as muitas terras improdutivas que poderiam dar o pão advindo do solo, ressaltado os cânticos tradicionais enaltecedores de uma situação caótica, através de uma crítica ao sistema de governo desumano implantado sem dar alternativas às crises recentes na Europa, embora o cenário seja dos anos de 1950, o tema é atual. Esta é uma realização de resultados plenamente satisfatórios e acima da média que contribui neste registro admirável sobre os descalabros sociais da história dos alentejanos. Capta as belas imagens e os poucos diálogos dos locais que giram em torno dos desmandos e das situações peculiares regionais lusitanas de um povo sofrido e injustiçado pelas paupérrimas condições de sobrevivência.

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