A Vingança
O paulistano Sérgio Tréfaut faz carreira em Portugal, onde está há muitos anos. Foi ex-assistente de vários diretores lusitanos,
estreou com o curta Alcibiades (1991),
realizou os documentários Fleurette
(2002), Lisboetas (2004) e A Cidade dos Mortos (2009), tendo no
longa-metragem Viagem a Portugal (2011)
a primeira experiência na ficção. Voltou para o gênero documental com Alentejo, Alentejo (2014), quando foi devidamente
reconhecido internacionalmente ao retratar com dignidade dezenas de grupos
amadores que se reuniam regularmente na região que dá nome ao filme, ao sul
do Rio Tejo. Ali, ensaiavam antigos cantos polifônicos para improvisar modinhas
contemporâneas, numa bela viagem musical por um modo peculiar de expressão e
paixão dos seus intérpretes. Divulgou o “cante” que nasceu nas tabernas e nos
campos, entre camponeses e mineiros, repassado ao longo de várias gerações como
um criativo e real lamento choroso das canções. Nas últimas décadas, novos
grupos apareceram na periferia de Lisboa e em diversos países para onde os
alentejanos emigraram. Miguel Gomes realizou o excelente similar Aquele Querido Mês de Agosto (2008), com
filmagens em Argamil, na região central, próximo de Coimbra.
Tréfaut retoma à ficção depois da única tentativa com Viagem a Portugal para construir este instigante
drama familiar social Raiva,
ambientado em 1950, nos remotos campos do Baixo Alentejo, no Sul do país
português, pelas lentes de Acacio de Almeida na fascinante fotografia em preto
e branco com contrastes no tom acinzentado. Inspirou-se no livro Seara do Vento, lançado em 1958, de
autoria do escritor Manuel da Fonseca. O longa acompanha a saga de uma família extremamente
pobre na área rural, no qual os campos estão maltratados pelos ventos e a seca,
em uma desoladora miséria de fome e humilhação que assolam aquela comunidade em
frangalhos. A violência brota pelos conflitos entre camponeses e os poderosos
donos da terra. O prólogo, que já antecipa o epílogo e afasta a expectativa
sobre o desfecho, é uma exposição arrebatadora com dois violentos assassinatos em
apenas uma noite de brutal descarga emocional após uma grande injustiça social
decorrente de outra inusitada morte.
O mistério que se espalha pelo lugarejo é quanto à origem do
crime que toma conta daquele inóspito lugar de repressão. A vingança não é
gratuita, logo o enredo começa a desenrolar o grande novelo do enigma. Diz o
narrador: “nas terras mortas onde não há pão, os pobres nascem pobres e os
ricos nascem ricos”, que até poderia ser um resumo da narrativa da proposta sobre
o realismo cru desta trama arrebatadora. No centro da família patriarcal de
camponeses, sem trabalho e sem alimentos, está Palma (Hugo Bentes), um homem taciturno
e com boa autoestima, acaba por envolver-se em pequenos contrabandos para dar
sustento à família. É um inconformado com as injustiças e as perseguições ali
existentes, principalmente contra ele. Por isto anda sempre com uma espingarda para
se defender, já sua mulher (Leonor Silveira) sofre com o filho deficiente
físico e mental, além das incursões da filha (Catarina Wallenstein), uma ativista
sindical em busca de condições melhores para a criação de trabalhos, diante dos
infortúnios que se espalham pelos lares de desempregados em confronto aberto às
oligarquias representativas do poder.
Uma obra que tem o mérito de obter algum lirismo, porém sem
cair na armadilha melodramática, com harmonia de equilíbrio na difícil construção
sem pieguismos baratos. Em ritmo de faroeste contido enfatiza as autoridades sendo
manipuladas pelo ricaço e vilão da história, Reis (Diogo Dória), o pivô das
desavenças com amplo domínio e influência na região pela sua posição
socioeconômica abastada. Responsável pelo cerco ao protagonista contestador que
irá deteriorar as relações e tornar iminente a luta de classes naquela região.
Nos diálogos secos e diretos, com alguns rastros nos cânticos da trilha sonora,
percebe-se o ardor com muita dor, ao falar das necessidades prementes para
matar a fome e escapar da morte que se aproxima, sempre com as imagens pelos
olhares perdidos no horizonte à procura de quimeras no universo. Manoel de
Oliveira também fazia pequenas elucubrações pela cantoria folclórica como se vê
no longa O Estranho Caso de Angélica
(2010), em que a música era cantada em forma de fado pelo capataz para os
lavradores num trabalho subalterno e arcaico. Determinados em aplainar as
terras dos vinhedos com as foices para carpir e ceifar vidas, estampadas nas
fotografias que emolduravam o painel, através do canto melódico e triste por
uma melancolia prenunciando o instinto da partida definitiva. Tréfaut segue o
mestre inspirador ao criar um clima hostil e pouco saudável, misturando o
realismo com o imaginário, num exercício mental delicioso dos limites propostos
da ficção para um tensionado e abrangente drama social.
O abutre destroçando o coelho e a tentativa de proteção do
roedor pelo cunhado alcoólatra soa como uma antecipação alegórica da tragédia
anunciada prestes a explodir. São sinalizações indicadas ao espectador numa
linguagem quase que teatral para os grandes espaços ornamentados de raros
objetos e móveis, exceto os pequenos tocos de madeira representando cadeiras e
uma frigideira para elaboração das poucas refeições. Raiva é um filme preocupado com o povo que sofre com o desemprego
torturante que reina naquela região em estado de penúria ultrajante. Num
formato clássico e austero, ao melhor estilo de Manoel Oliveira, com planos
fixos e simétricos, além de usar minimamente os recursos da trilha, com o
intuito de não induzir na reflexão da plateia mais atenta e comprometida com o
bom cinema, exceto em momentos propícios e pontuais da narrativa que focou na
vingança. Há os questionamentos nas entrelinhas sobre as muitas terras
improdutivas que poderiam dar o pão advindo do solo, ressaltado os cânticos
tradicionais enaltecedores de uma situação caótica, através de uma crítica ao
sistema de governo desumano implantado sem dar alternativas às crises recentes na
Europa, embora o cenário seja dos anos de 1950, o tema é atual. Esta é uma
realização de resultados plenamente satisfatórios e acima da média que
contribui neste registro admirável sobre os descalabros sociais da história dos
alentejanos. Capta as belas imagens e os poucos diálogos dos locais que giram
em torno dos desmandos e das situações peculiares regionais lusitanas de um
povo sofrido e injustiçado pelas paupérrimas condições de sobrevivência.
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