Verdades e Mentiras
O cultuado cineasta iraniano Asghar Farhadi se notabilizou
por realizações voltadas para seus conterrâneos, através de crônicas em que
aborda os conflitos sociais do dia a dia, os aspectos morais da sociedade
conservadora, as imposições religiosas, além de lançar um olhar sobre as
gerações futuras e as relações com as do passado. Assim foi com o inesquecível,
talvez o melhor filme do diretor, A
Separação (2011), em que é o primeiro iraniano a ganhar o Oscar estrangeiro,
Globo de Ouro e Urso de Ouro em Berlim. Depois viria conquistar novamente o Oscar
em língua estrangeira com o admirável O
Apartamento (2016), vencendo ainda em melhor roteiro e melhor ator no
Festival de Cannes. Sua primeira produção fora do Irã foi com O Passado (2013), com rodagem na França,
testou suas habilidades em outra cultura, com um resultado bem acima da média.
Mostrou-se um realizador voltado essencialmente para as coisas do cotidiano conflitado
de seu país, embora bem distante de seu povo, não se afastou das relações
intrincadas e apresentadas com a tradicional naturalidade.
Todos Já Sabem é o
último longa-metragem de Farhadi, agora em língua espanhola, reitera sua universalidade
depois da experiência exitosa em
francês. Um misto de drama familiar com thriller policial. Pela primeira vez deixa de lado os problemas
inerentes dos seus compatriotas para mergulhar em conflitos relacionados com
famílias de outra cultura. Deu mais um passo à frente e se ocidentalizou circunstancialmente,
com uma narrativa sobre um drama tipicamente alusivo aos espanhóis e argentinos,
num painel bem formatado em um roteiro escrito pelo próprio realizador, com
reviravoltas sobre os mistérios que cercam o rapto e o enigma que irá
transformar aquele cenário. É bem coadjuvado pela primorosa fotografia de José
Luis Alcaine, contumaz fotógrafo e parceiro de Pedro Almodóvar, como em Mulheres à Beira De Um Ataque de Nervos (1988),
Má Educação (2004), Volver (2006) e A Pele Que Habito (2011), e apontado como um dos responsáveis por
definir o estilo do cinema da Espanha a partir da década de 1980, por utilizar
e inovar com cores exuberantes e de fortes contrastes.
Com um elenco recheado de estrelas bem contidas e sem espaços
para histrionismos, a trama retrata a bela e estonteante Laura (Penélope Cruz),
que retorna à Espanha depois de muitos anos para assistir a cerimônia de
casamento da irmã caçula. Casada com o argentino Alejandro (Ricardo Darín), impossibilitado
momentaneamente por alegados motivos de trabalho não pôde acompanhá-la, fazendo
com que ela viajasse somente com um filho pequeno e a serelepe filha
adolescente, Ana (Inma Cuesta). Chegando à sua cidade natal, reencontra o
ex-namorado que não via há muito tempo, Paco (Javier Bardem), casado com Bea (Bárbara
Lennie), o tio Fernando (Eduard Fernández), a mãe Mariana (Elvira Minguez) e a
prima Rocio (Sara Sálamo). Durante a festa, uma tragédia acontece com o
desaparecimento de um dos convidados, que viria suceder em um inusitado sequestro
do núcleo familiar. Todos se mobilizam diante de um crime de grandes proporções
e a pedida de um resgate milionário logo começa a ser enviada para os celulares.
Há questionamentos e acusações sobre os possíveis culpados estarem presentes
entre os participantes do evento festivo. Surge um detetive em busca do algoz,
onde todos são suspeitos e o clima fica tensionado.
Seguindo uma trajetória narrativa semelhante ao frenético e
acolhedor À Procura de Elly (2009),
vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor no Festival de Berlim, Farhadi gira
o foco para o suspense, depois de apresentar todos os personagens filmados no
matrimônio, numa estrutura clássica de um filme policial. Cria-se um enredo
propício para um mosaico do presente com resquícios do passado, no qual se
prolifera os muitos segredos de verdades e mentiras que serão revelados de
forma homeopática. As possíveis soluções são buscadas dentro de um contexto de
personagens fragilizados pelas feridas abertas, dando margens para os fantasmas
se locomoverem de um lado para outro neste jogo de xadrez, em que o passado de
cada um é colocado em xeque daqueles adultos cujas vidas estão entrecruzadas e ainda
guardam fragmentos rancorosos sobre amor, dinheiro, frustrações, ética,
manipulações e ganância. Eis uma moralidade repressora por costumes indesejáveis
e corrompidos de um microcosmo de vínculos rompidos de uma família pequeno-burguesa
em decomposição pelas ruínas do tempo e das situações afloradas pela inveja a
um ex-empregado com o poder financeiro em ascensão, como do vitivinicultor
visto como aproveitador de um momento delicado da fustigante crise econômica. Mas
ninguém é esquecido pela câmera numa estética pragmática de despiste, sem que a
imagem abandone todos os personagens teoricamente envolvidos.
O drama dos personagens em foco é esmiuçado pelo cineasta em
momentos distintos pela importância da história no contexto. O desenvolvimento
do enredo bem urdido até o desenlace acompanha a rotina dos parentes próximos
naquele lugarejo de encantos pitorescos, passando pelas insinuações sobre os
empregados dos parreirais de uva e o direcionamento aos protagonistas Pablo e
Alejandro, este em falência profissional na Argentina, até uma grande revelação
um tanto quanto convencional no epílogo. O fracasso das investigações pelas
autoridades irá de encontro com a desconfiança e a perspicácia da mãe com seu
faro feminino. O mistério não está tão distante dos olhos aguçados de quem tem
alguma sensibilidade de observação, pois o crime nunca é perfeito, são recados
do realizador. Todos Já Sabem toma
contornos de um clímax de suspense até revelar-se quem é o (a) verdadeiro (a)
culpado (a), nos ótimos diálogos e na construção psicológica dos personagens em
uma narrativa complexa. As revelações do passado não são julgadas e apontadas
diretamente, deixando ao espectador tirar suas conclusões neste interessante e
acessível suspense de boa tensão, embora não esteja num patamar superior, ainda
assim suplanta as muitas realizações medíocres que invadem as salas de cinema,
ao reconstruir o gênero policial dentro de um drama intimista com elegância e
sutileza.
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