terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Todos Já Sabem



Verdades e Mentiras

O cultuado cineasta iraniano Asghar Farhadi se notabilizou por realizações voltadas para seus conterrâneos, através de crônicas em que aborda os conflitos sociais do dia a dia, os aspectos morais da sociedade conservadora, as imposições religiosas, além de lançar um olhar sobre as gerações futuras e as relações com as do passado. Assim foi com o inesquecível, talvez o melhor filme do diretor, A Separação (2011), em que é o primeiro iraniano a ganhar o Oscar estrangeiro, Globo de Ouro e Urso de Ouro em Berlim. Depois viria conquistar novamente o Oscar em língua estrangeira com o admirável O Apartamento (2016), vencendo ainda em melhor roteiro e melhor ator no Festival de Cannes. Sua primeira produção fora do Irã foi com O Passado (2013), com rodagem na França, testou suas habilidades em outra cultura, com um resultado bem acima da média. Mostrou-se um realizador voltado essencialmente para as coisas do cotidiano conflitado de seu país, embora bem distante de seu povo, não se afastou das relações intrincadas e apresentadas com a tradicional naturalidade.

Todos Já Sabem é o último longa-metragem de Farhadi, agora em língua espanhola, reitera sua universalidade depois da experiência exitosa em francês. Um misto de drama familiar com thriller policial. Pela primeira vez deixa de lado os problemas inerentes dos seus compatriotas para mergulhar em conflitos relacionados com famílias de outra cultura. Deu mais um passo à frente e se ocidentalizou circunstancialmente, com uma narrativa sobre um drama tipicamente alusivo aos espanhóis e argentinos, num painel bem formatado em um roteiro escrito pelo próprio realizador, com reviravoltas sobre os mistérios que cercam o rapto e o enigma que irá transformar aquele cenário. É bem coadjuvado pela primorosa fotografia de José Luis Alcaine, contumaz fotógrafo e parceiro de Pedro Almodóvar, como em Mulheres à Beira De Um Ataque de Nervos (1988), Má Educação (2004), Volver (2006) e A Pele Que Habito (2011), e apontado como um dos responsáveis por definir o estilo do cinema da Espanha a partir da década de 1980, por utilizar e inovar com cores exuberantes e de fortes contrastes.

Com um elenco recheado de estrelas bem contidas e sem espaços para histrionismos, a trama retrata a bela e estonteante Laura (Penélope Cruz), que retorna à Espanha depois de muitos anos para assistir a cerimônia de casamento da irmã caçula. Casada com o argentino Alejandro (Ricardo Darín), impossibilitado momentaneamente por alegados motivos de trabalho não pôde acompanhá-la, fazendo com que ela viajasse somente com um filho pequeno e a serelepe filha adolescente, Ana (Inma Cuesta). Chegando à sua cidade natal, reencontra o ex-namorado que não via há muito tempo, Paco (Javier Bardem), casado com Bea (Bárbara Lennie), o tio Fernando (Eduard Fernández), a mãe Mariana (Elvira Minguez) e a prima Rocio (Sara Sálamo). Durante a festa, uma tragédia acontece com o desaparecimento de um dos convidados, que viria suceder em um inusitado sequestro do núcleo familiar. Todos se mobilizam diante de um crime de grandes proporções e a pedida de um resgate milionário logo começa a ser enviada para os celulares. Há questionamentos e acusações sobre os possíveis culpados estarem presentes entre os participantes do evento festivo. Surge um detetive em busca do algoz, onde todos são suspeitos e o clima fica tensionado.

Seguindo uma trajetória narrativa semelhante ao frenético e acolhedor À Procura de Elly (2009), vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor no Festival de Berlim, Farhadi gira o foco para o suspense, depois de apresentar todos os personagens filmados no matrimônio, numa estrutura clássica de um filme policial. Cria-se um enredo propício para um mosaico do presente com resquícios do passado, no qual se prolifera os muitos segredos de verdades e mentiras que serão revelados de forma homeopática. As possíveis soluções são buscadas dentro de um contexto de personagens fragilizados pelas feridas abertas, dando margens para os fantasmas se locomoverem de um lado para outro neste jogo de xadrez, em que o passado de cada um é colocado em xeque daqueles adultos cujas vidas estão entrecruzadas e ainda guardam fragmentos rancorosos sobre amor, dinheiro, frustrações, ética, manipulações e ganância. Eis uma moralidade repressora por costumes indesejáveis e corrompidos de um microcosmo de vínculos rompidos de uma família pequeno-burguesa em decomposição pelas ruínas do tempo e das situações afloradas pela inveja a um ex-empregado com o poder financeiro em ascensão, como do vitivinicultor visto como aproveitador de um momento delicado da fustigante crise econômica. Mas ninguém é esquecido pela câmera numa estética pragmática de despiste, sem que a imagem abandone todos os personagens teoricamente envolvidos.

O drama dos personagens em foco é esmiuçado pelo cineasta em momentos distintos pela importância da história no contexto. O desenvolvimento do enredo bem urdido até o desenlace acompanha a rotina dos parentes próximos naquele lugarejo de encantos pitorescos, passando pelas insinuações sobre os empregados dos parreirais de uva e o direcionamento aos protagonistas Pablo e Alejandro, este em falência profissional na Argentina, até uma grande revelação um tanto quanto convencional no epílogo. O fracasso das investigações pelas autoridades irá de encontro com a desconfiança e a perspicácia da mãe com seu faro feminino. O mistério não está tão distante dos olhos aguçados de quem tem alguma sensibilidade de observação, pois o crime nunca é perfeito, são recados do realizador. Todos Já Sabem toma contornos de um clímax de suspense até revelar-se quem é o (a) verdadeiro (a) culpado (a), nos ótimos diálogos e na construção psicológica dos personagens em uma narrativa complexa. As revelações do passado não são julgadas e apontadas diretamente, deixando ao espectador tirar suas conclusões neste interessante e acessível suspense de boa tensão, embora não esteja num patamar superior, ainda assim suplanta as muitas realizações medíocres que invadem as salas de cinema, ao reconstruir o gênero policial dentro de um drama intimista com elegância e sutileza.

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