terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Guerra Fria



Corações Destroçados

Pawel Pawlikowski é um diretor autoral que busca nos pequenos detalhes uma amostragem da essência cinematográfica. Um autêntico artesão da sétima arte. Nascido há 61 anos em Varsóvia, foi criado desde a infância na Inglaterra com a família, ao fugir do sólido regime comunista implantado em seu país. Ida (2013) foi o primeiro filme rodado em sua terra natal e falado na língua polonesa, com o qual ganhou aproximadamente 70 prêmios internacionais, entre eles os de melhor filme, roteiro, direção e fotografia no European Film Awards de 2014, além de arrebatar o Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira, levando pela primeira vez a estatueta para a Polônia, nacionalidade dos já consagrados diretores Roman Polanski, Andrzej Wajda e Krzysztof Kieslowski. Antes filmara em inglês os longas Last Resort (2000) e Meu Amor de Verão (2004), também é dele Estranha Obsessão (2011) e o ainda inédito Limonov (2018).

Novamente o cineasta teve sua última obra, Guerra Fria, indicada ao Oscar para competir na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, diretor e fotografia, com ótimas chances de levar outra vez a estatueta; também teve boa acolhida no Festival de Cannes, em 2018, esta realização polonesa em coprodução com a França e o Reino Unido, ao ser laureado em melhor direção; arrebatou ainda o prêmio Goya de melhor filme europeu do ano passado. A trama é centrada durante o engajamento da Polônia stalinista que integrava com as repúblicas da Alemanha Oriental, da Tchecoslováquia, da Hungria, da Bulgária e da Romênia, a famosa Cortina de Ferro que separava a Europa Oriental da Europa Ocidental. Eram países que alicerçavam a divisão no leste europeu, sustentados pela então enérgica União Soviética, hoje já dissolvida, que tinha o estrito controle político e econômico. As diferenças de um casal pelas contradições são expostas durante o desenrolar do enredo, entre um mundo ultrapassado e a renovação da esperança futura. Não é uma reconstrução do romantismo tradicional, mas de entraves políticos circunstanciais que se sucedem na vida dos dois, sob uma narrativa que foca na relação visceral dolorosa entrecortada por silêncios e apresentações musicais decorrentes de uma solidão imensurável. Eles enfrentam o problema com maturidade e seus olhares acusam o sofrimento profundo e dilacerante, agasalhados pelo grande amor de sentimentos com ternura, doçura e conformismo.

O arrebatador longa-metragem é baseado em traços biográficos de fatos reais ocorridos com familiares do cineasta, inspirado na saga de seus pais que viveram 40 anos de idas e vindas de encontros e desencontros, teve emprestado seus nomes aos personagens principais da trama. Ambos faleceram em 1989, antes da queda do Muro de Berlim. A história começa em Varsóvia, em 1949, logo após o fim da II Guerra Mundial, e se estende até 1964, por quinze anos no qual Wiktor (Tomasz Kot), um músico experiente que é maestro e pianista, com seus segredos íntimos, amante da liberdade e defensor das prerrogativas do direito de ir e vir, diretor da companhia estatal Mazurka de dança e música folclórica dos camponeses da Polônia. Neste ínterim, ele conhece Zula (Joanna Kulig), uma jovem talentosa cantora extrovertida e acusada de matar o pai, com suas façanhas e de um temperamento completamente diferente do músico. O casal reprimido quer viver, amar e respirar novos ares, embora a relação e o vínculo afetivo sejam ingredientes agridoces de um amor improvável pelas construções sociopolíticas da impossibilidade do contexto da Guerra Fria do país deles.

Pawlikowski acentua com sutileza e sensibilidade a tristeza e a pouca felicidade, em cenas inesquecíveis como da protagonista dançando rock num clube, depois de seu retorno de Palermo, quando se casou com um italiano para adquirir a dupla cidadania, para reencontrar Wiktor, que havia se refugiado em Paris. Ainda que o pianista também tivesse um affair com uma compositora de quem ele gravava algumas trilhas para o cinema, eles entram em conflito outra vez. Zula quer retornar para Varsóvia, pois não se adaptara ao lado ocidental, mas o companheiro respira liberdade e é contrário ao regresso. Os diálogos são curtos em tom direto, no enxuto roteiro em parceria de Janusz Glowacki com o próprio diretor, com cortes certeiros em elipses apropriadas. Lukasz Zal é o responsável pela fascinante fotografia em preto e branco- também usou deste recurso em Ida- que explora o contraste com tons acinzentados, e pelas lentes são mostrados rostos e olhares de perplexidades mesclados de surpresa e indignação da angustiante política adotada pelo país dos personagens, na qual é retratada nos pequenos espaços, através da resolução de um formato quadrado de 4:3, ao estilo dos filmes antigos dos cinemas até os anos de 1950, fechando a imagem num formato adequado e angustiante da melancolia repassada. Embora o cenário seja, por muitas vezes, a efervescente, cultural e boêmia Cidade Luz dos anos de 1950. Ou ainda, quando o realizador foca na turnê da companhia de danças pela Alemanha Oriental (Berlim) e Iugoslávia, entre alguns dos países colaboradores dos soviéticos, entoando canções de propaganda de cunho do regime autoritário.

Entre pequenos gestos de carinho, há os encontros forjados pelo medo da represália das autoridades comunistas, demonstrando o imenso afeto e a união entre eles, tornando o vínculo forte e verossímil num relacionamento sem obviedades e com enorme força interior daqueles seres humanos vitimizados pelos horrores da brutalidade política antidemocrática que despedaça seus corações fragilizados. Guerra Fria é um drama intenso de um amor sublimado da grande paixão com os destroços remanescentes da amargura oriunda do coração e da alma aflorados de uma relação turbulenta de dois amantes de muita química, deixando que as imagens marcantes e os poucos diálogos exprimam os sentimentos do casal, numa obra simplesmente fabulosa e de uma reflexão profunda. Faz uma abordagem imparcial dos traumas da história ocorridos no século XX, através dos choques nefastos registrados por uma trajetória sem vencedores ou vencidos, através de uma realidade de embates pós-guerra pelos efeitos psicológicos e com lembranças de um passado repleto de fantasmas que impactam, com humanismo, melancolia e poesia bem representados no desfecho redentor.

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