Preconceito e Intolerância
Vencedor de três prêmios no Globo de Ouro: melhor filme de comédia,
roteiro e ator coadjuvante (Mahershala Ali), Green Book- O Guia insere-se como um dos fortes candidatos ao Oscar
deste ano, ao concorrer em cinco categorias; também venceu o Grande Festival de
Toronto na indicação de melhor filme. A
direção é do promissor norte-americano Peter Farrely, em seu longa-metragem de
estreia solo, antes dirigiu em parceria com o irmão Bobby as comédias Debi & Lóide- Dois Idiotas em Apuros
(1994), Quem Vai Ficar Com Mary
(1998) e Eu, Eu Mesmo & Irene
(2000). Conhecido por realizações anteriores menores, nas quais predominavam o
riso fácil, sem um grande foco. Agora deixa de lado estas obras de pouca
relevância para atingir um patamar mais elevado e consistente, com uma
abordagem para uma crítica social agradável e leve num contexto bem explorado, sem
deixar de ser enfático sobre o racismo e a hipocrisia da injustiça social no
Sul dos EUA, através do enxuto roteiro escrito por Nick Vallelonga, Brian Hayes
Currie e pelo próprio cineasta.
Eis uma comédia dramática baseada em uma história real, na
qual o título faz referência a um livro que apontava os hotéis, pousadas, restaurantes
e alguns locais que poderiam aceitar negros, em pleno ano de 1962. A trama retrata Tony
Lip “Bocudo” (Viggo Mortensen- de atuação soberba), um homem branco, fanfarrão,
o típico brucutu ítalo-americano que leva a vida com pequenos serviços em Nova Iorque. Precisa
achar um trabalho, logo após a discoteca em que trabalhava como segurança ter
as portas fechadas por culpa dele mesmo, tendo em vista ser uma pessoa violenta
e que resolve tudo na base do soco na cara do freguês. Fica sabendo de uma vaga
para motorista de um renomado músico, acaba conhecendo Don Shirley (Mahershala
Ali- de impecável interpretação), um conceituado e virtuose pianista
afrodescendente. A vaga parece cair do céu, pois o artista necessita fazer uma
turnê numa região conflagrada pela segregação, no Sul do país, onde as
diferenças étnicas ainda são fortemente marcadas pela violência com tintas
remanescentes de um racismo ignóbil e persistente. As intolerâncias não são
somente quanto à distinção de raças: branco e negro, mas também pela
discriminação aos homossexuais e o rancor destilado aos assumidamente não
heterossexuais.
O filme avança com sutileza e sensibilidade entre empregado
e empregador. Enquanto os dois se chocam no início, um vínculo finalmente
cresce à medida que eles viajam juntos e as diferenças injustas brotam por onde
passam. É montado um painel distinto para contar uma história que apresenta os
vilões nos grandes salões com tapetes vermelhos para uma grande festa, o
anti-herói branco em defesa da vítima marginalizada pela cor e a opção sexual
num contexto de pura hipocrisia. A realização é tangenciada por certa
generosidade com toques de humor, embora em escala bem menor diante da ira
latente que vai crescendo. O conservadorismo está presente nos sulistas
norte-americanos e a intransigência é uma das apresentações hostis para quem
ousa bater de frente ou contraditar aquelas ideias ali encravadas e pouco
solidárias com o politicamente correto estabelecido por um expressivo
contingente de uma realidade sombria para o desenvolvimento de uma pacificação.
É a simbolização da pouca lucidez numa iminente desagregação que deixa rastros
de ódio para resultados pouco convencionais na fragilidade da paz em confronto
com a esperança de uma solução pragmática esfacelada pelo preconceito de uma
sociedade deformada.
Farrely segue uma linha narrativa que lembra pelas
semelhanças Conduzindo Miss Daisy
(1989), de Bruce Beresford, em que havia a premissa sobre uma idosa branca
conservadora que era obrigada a se adaptar a um motorista negro subordinado,
mas de personalidade forte; ou ainda na badalada produção francesa Intocáveis (2011), de Eric Toledano e Olivier
Nakache, sobre uma relação improvável de uma história real de uma inesperada
amizade genuína, entre um milionário tetraplégico e um ex-assaltante, o
imigrante do Senegal que busca seu reingresso social na França dos brancos, com
um toque de humor cáustico na busca pela igualdade entre duas pessoas opostas
social e intelectualmente. Green Book- O
Guia tem a dinâmica invertida, porque agora é o artista afro famoso
contratando um homem branco de origem italiana com o viés totalmente racista
para trabalhar como seu empregado. A inovação está exatamente na troca de
papéis, por ser fundamental para criar um clímax de horror e brutalidade, que
torna a dramaticidade contextualizada e amplamente complexa na sua essência,
inclusive para os familiares e amigos do motorista, todos avessos a tal
circunstância, porém o desfecho será redentor e revelador com a chegada da
comemoração do Natal.
Uma obra com amplitude maior pela sutileza, acima das banalidades
que proliferam em filmes redundantes sobre a temática racial. Um road movie que aborda com eficácia as
relações conturbadas e fragmentadas pela dura ruptura social que desencadeiam em
episódios grotescos, violentos e perversos sobre a perda do controle como
elementos opressores retratados de uma realidade cruel e selvagem, bem
construída pelo realizador que escapa com imparcialidade dos maniqueísmos que
rodeiam e poderiam aflorar para um epílogo reduzido da comédia. Ali fica
estampado que não há heroísmo barato, mas uma tomada de consciência pela
transformação que traz reflexos nas mudanças comportamentais de um ser humano boçal
em mutação, em que o inesquecível personagem truculento e apaixonado pela
esposa, mas sensível e romântico, às vezes forte e arrogante, em outras
fragilizado como o macho alfa. Mas a dura realidade que presenciou o torna
flexível para ter um olhar mais crítico sobre uma sociedade enferma pelos desdobramentos
que transbordam da civilidade. São componentes de uma realização de humor sarcástico,
intercalado com algum lirismo, embora haja o preconceito vil de um
conservadorismo arcaico, para deixar registrada a reflexão da intolerância
sexual e das crônicas questões de cunho racial e do ódio aplastante numa região
inflamada pela estupidez.
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