terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Green Book - O Guia



Preconceito e Intolerância

Vencedor de três prêmios no Globo de Ouro: melhor filme de comédia, roteiro e ator coadjuvante (Mahershala Ali), Green Book- O Guia insere-se como um dos fortes candidatos ao Oscar deste ano, ao concorrer em cinco categorias; também venceu o Grande Festival de Toronto na indicação de melhor filme. A direção é do promissor norte-americano Peter Farrely, em seu longa-metragem de estreia solo, antes dirigiu em parceria com o irmão Bobby as comédias Debi & Lóide- Dois Idiotas em Apuros (1994), Quem Vai Ficar Com Mary (1998) e Eu, Eu Mesmo & Irene (2000). Conhecido por realizações anteriores menores, nas quais predominavam o riso fácil, sem um grande foco. Agora deixa de lado estas obras de pouca relevância para atingir um patamar mais elevado e consistente, com uma abordagem para uma crítica social agradável e leve num contexto bem explorado, sem deixar de ser enfático sobre o racismo e a hipocrisia da injustiça social no Sul dos EUA, através do enxuto roteiro escrito por Nick Vallelonga, Brian Hayes Currie e pelo próprio cineasta.

Eis uma comédia dramática baseada em uma história real, na qual o título faz referência a um livro que apontava os hotéis, pousadas, restaurantes e alguns locais que poderiam aceitar negros, em pleno ano de 1962. A trama retrata Tony Lip “Bocudo” (Viggo Mortensen- de atuação soberba), um homem branco, fanfarrão, o típico brucutu ítalo-americano que leva a vida com pequenos serviços em Nova Iorque. Precisa achar um trabalho, logo após a discoteca em que trabalhava como segurança ter as portas fechadas por culpa dele mesmo, tendo em vista ser uma pessoa violenta e que resolve tudo na base do soco na cara do freguês. Fica sabendo de uma vaga para motorista de um renomado músico, acaba conhecendo Don Shirley (Mahershala Ali- de impecável interpretação), um conceituado e virtuose pianista afrodescendente. A vaga parece cair do céu, pois o artista necessita fazer uma turnê numa região conflagrada pela segregação, no Sul do país, onde as diferenças étnicas ainda são fortemente marcadas pela violência com tintas remanescentes de um racismo ignóbil e persistente. As intolerâncias não são somente quanto à distinção de raças: branco e negro, mas também pela discriminação aos homossexuais e o rancor destilado aos assumidamente não heterossexuais.

O filme avança com sutileza e sensibilidade entre empregado e empregador. Enquanto os dois se chocam no início, um vínculo finalmente cresce à medida que eles viajam juntos e as diferenças injustas brotam por onde passam. É montado um painel distinto para contar uma história que apresenta os vilões nos grandes salões com tapetes vermelhos para uma grande festa, o anti-herói branco em defesa da vítima marginalizada pela cor e a opção sexual num contexto de pura hipocrisia. A realização é tangenciada por certa generosidade com toques de humor, embora em escala bem menor diante da ira latente que vai crescendo. O conservadorismo está presente nos sulistas norte-americanos e a intransigência é uma das apresentações hostis para quem ousa bater de frente ou contraditar aquelas ideias ali encravadas e pouco solidárias com o politicamente correto estabelecido por um expressivo contingente de uma realidade sombria para o desenvolvimento de uma pacificação. É a simbolização da pouca lucidez numa iminente desagregação que deixa rastros de ódio para resultados pouco convencionais na fragilidade da paz em confronto com a esperança de uma solução pragmática esfacelada pelo preconceito de uma sociedade deformada.

Farrely segue uma linha narrativa que lembra pelas semelhanças Conduzindo Miss Daisy (1989), de Bruce Beresford, em que havia a premissa sobre uma idosa branca conservadora que era obrigada a se adaptar a um motorista negro subordinado, mas de personalidade forte; ou ainda na badalada produção francesa Intocáveis (2011), de Eric Toledano e Olivier Nakache, sobre uma relação improvável de uma história real de uma inesperada amizade genuína, entre um milionário tetraplégico e um ex-assaltante, o imigrante do Senegal que busca seu reingresso social na França dos brancos, com um toque de humor cáustico na busca pela igualdade entre duas pessoas opostas social e intelectualmente. Green Book- O Guia tem a dinâmica invertida, porque agora é o artista afro famoso contratando um homem branco de origem italiana com o viés totalmente racista para trabalhar como seu empregado. A inovação está exatamente na troca de papéis, por ser fundamental para criar um clímax de horror e brutalidade, que torna a dramaticidade contextualizada e amplamente complexa na sua essência, inclusive para os familiares e amigos do motorista, todos avessos a tal circunstância, porém o desfecho será redentor e revelador com a chegada da comemoração do Natal.

Uma obra com amplitude maior pela sutileza, acima das banalidades que proliferam em filmes redundantes sobre a temática racial. Um road movie que aborda com eficácia as relações conturbadas e fragmentadas pela dura ruptura social que desencadeiam em episódios grotescos, violentos e perversos sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade cruel e selvagem, bem construída pelo realizador que escapa com imparcialidade dos maniqueísmos que rodeiam e poderiam aflorar para um epílogo reduzido da comédia. Ali fica estampado que não há heroísmo barato, mas uma tomada de consciência pela transformação que traz reflexos nas mudanças comportamentais de um ser humano boçal em mutação, em que o inesquecível personagem truculento e apaixonado pela esposa, mas sensível e romântico, às vezes forte e arrogante, em outras fragilizado como o macho alfa. Mas a dura realidade que presenciou o torna flexível para ter um olhar mais crítico sobre uma sociedade enferma pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. São componentes de uma realização de humor sarcástico, intercalado com algum lirismo, embora haja o preconceito vil de um conservadorismo arcaico, para deixar registrada a reflexão da intolerância sexual e das crônicas questões de cunho racial e do ódio aplastante numa região inflamada pela estupidez.

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