Amarga Felicidade
O Festival de Cannes do ano passado premiou com a Palma de
Ouro o filme do Japão Assunto de Família,
em uma abordagem aprofundada e sem restrições sobre o conceito propriamente
dito do núcleo de uma família, com discussões ácidas e controversas de contornos
de grande relevância sobre as regras e o formato que estruturam as relações
sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano. A definição
tradicional deste eixo composto pelo pai e a mãe com seus filhos de sangue ou
não na sociedade contemporânea está em pauta e o questionamento é lançado pelo
olhar atento do festejado cineasta Hirokasu Kore-eda. O drama foi indicado
entre os títulos pré-selecionados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, que também
concorreu no Globo de Ouro deste ano na mesma categoria, perdendo para o badalado
mexicano Roma (2018), de Alfonso
Cuarón. O realizador já havia concorrido, sem êxito, à Palma de Ouro em outras três
vezes: Tão Distante (2001), Ninguém Pode Saber (2004), e Pais e Filhos (2013) que conquistou o
Prêmio do Júri.
O diretor japonês tem uma vasta filmografia das crônicas
ambientadas na classe média baixa de seu país, dando um mergulho no microcosmo
familiar para contar histórias verossímeis do dia a dia. É um observador das
mudanças inerentes que acontecem com o passar dos anos, expondo as feridas não
cicatrizadas para lançar luzes ao universo das distorções dos lares
desagregados e em ruínas, ou pela violência doméstica ou pela desestruturação
financeira, sempre com uma temática voltada para as perdas, enigmas da vida, a
morte por consequência e os desatinos pelas rupturas dos laços que unem os seus
respectivos membros familiares. Abordagens estas encontradas no laureado Assunto de Família, que aprofunda o
conceito sobre a definição clássica destes personagens sofridos que integram
este contundente drama intimista contado com certa suavidade, onde não falta singeleza
e uma aparente serenidade para buscar a construção dos vínculos afetivos com muita
ternura, carinho e amor, afastando-se do julgamento apressado de normas morais vigentes.
O longa retrata uma paradoxal busca de união fraternal daquelas
criaturas excluídas que sobrevivem de migalhas, magoadas e dilaceradas pelas
circunstâncias antagônicas, como do inconsequente Osamu (Lily Franky) e o
garoto Shota (Jyo Kairi), que mantêm uma convivência de pai e filho. Eles
praticam contumazmente pequenos furtos em mercadinhos, lojas e automóveis, tudo
sob uma invejável organização por sinais. Já Nobuyo (Sakura Andô) faz o papel
da mãe, ela vive maritalmente com Osamu, e também pratica pequenos delitos na
empresa em que trabalha, até ser despedida circunstancialmente. Numa noite de frio
intenso, depois de uma jornada de trabalhos escusos, pai e filho encontram Yuri
(Miyu Sasaki) abandonada na rua, uma menininha com fome e com cara de choro,
que é levada para casa. O casal pretende entregá-la às autoridades, mas
desistem ao perceberem que é mais uma vítima de violência doméstica pelos pais.
Decidem abrigá-la e a adotam como se fosse filha, oportunizando um novo lar,
inclusive é treinada para ajudar nos golpes realizados pelo irmão e o pai por
afinidades. Abstendo-se de falso moralismo e preconceitos baratos, o filme é
conduzido com equidistância, sem cair em armadilhas rasteiras melodramáticas,
que somente um notável realizador poderia conduzir com isenção e imparcialidade
esta trama locada numa sub-habitação na periferia de Tóquio pertencente à viúva
Hatsue (Kirin Kiki, a atriz morreu em setembro de 2018), denominada de vovó. Esta
família ainda tem a jovem Aki (Mayu Matsuoka), que deixa de ir à escola para se
despir e ganhar algum dinheiro nas cabines de uma loja de sexo.
Kore-eda herdou a sutileza mesclada com sensibilidade dos
inspirados cineastas conterrâneos Yusujiro Ozu de Era Uma Vez em Tóquio (1953), Mikio Naruse por Midareru (1964), e o criador do cinema de animação Hayao Miyazaki
com temas recorrentes da relação da humanidade com a natureza, como na cena do alegre
banho redentor em família no mar. Segue a trajetória do questionamento primoroso
dos velhos mestres para mergulhar no universo peculiar das tradições da cultura
japonesa. No longa Ninguém Pode Saber (2003),
havia a temática da mãe ausente dos filhos e a falta de afeto aos mesmos que
literalmente viviam confinados num apartamento; em Pais e Filhos (2013), discutia-se os efeitos futuros dos bebês
trocados no berçário com as revelações recebidas, num clima de tensão instalado
diante do amor pelo filho de outros pais e a intolerância de um deles; em Nossa
Irmã Mais Nova (2014), mostra-se
a dolorosa distância de três filhas que não veem o pai há 15 anos, mas ao
saberem da morte dele, resolvem ir ao seu enterro, e lá conhecerão a tímida
meia-irmã; sem esquecer de Depois da
Tempestade (2016), no qual o enredo é traçado com um sabor agridoce para
deixar emergir fatos que trarão conflitos sentimentais que envolvem pais que
terão de lidar com adversidades repentinas, pois precisam tocar suas vidas.
Assunto de Família
é uma narrativa com delicadeza, leveza e senso poético de uma aparente família pobre tradicional em busca de dinheiro dos pequenos crimes efetuados, até
que um incidente provocado por um dos personagens que questiona implicitamente
os valores éticos, sendo os segredos escondidos entre eles desvendados aos poucos.
Neste painel soturno está a ex-prostituta que se juntou ao seu cliente e
recolheu uma criança abandonada por um carro de propriedade de alguém de muitas
posses; não devolveu a menina que fugiu da violência; além da ocultação de um
cadáver enterrado na própria residência. Porém, os vínculos que os unem são
mais fortes e revelam um cotidiano de intenso amor, afeto e solidariedade
humana para uma reflexão humanista pelo despojamento de falsos tabus. O diretor
tem como marca registrada as histórias familiares tradicionais e suas gerações,
mas agora dá uma guinada e se detém nas transformações e de uma composição
ampla e irrestrita, para retratar estas novas situações diárias de simples
coisas que irão ao encontro de relações intrincadas e modificações relevantes. O
drama é admirável pelo equilíbrio, embora seja sombrio e a tristeza se mescla
com os momentos de felicidade para os personagens daquele núcleo familiar que
ruma para a extinção. O desfecho traz cenas comoventes, como a despedida no
ônibus e as palavras sussurradas pelo adolescente; ou ainda do registro soberbo
da garotinha brincando lúdica e ingenuamente. Um extraordinário filme sobre as
sutilezas do amor e dos laços de ternura com suas ligações se esboroando, mas
remanescem como a doce culpa do pai e a confissão da mulher para proteger o
companheiro. Emociona por ser intenso na complexidade das relações conceituais
de uma nova família, e por tudo isto é a obra mais madura e completa que atinge o
patamar de melhor filme da carreira de Kore-eda.
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