terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Assunto de Família



Amarga Felicidade

O Festival de Cannes do ano passado premiou com a Palma de Ouro o filme do Japão Assunto de Família, em uma abordagem aprofundada e sem restrições sobre o conceito propriamente dito do núcleo de uma família, com discussões ácidas e controversas de contornos de grande relevância sobre as regras e o formato que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano. A definição tradicional deste eixo composto pelo pai e a mãe com seus filhos de sangue ou não na sociedade contemporânea está em pauta e o questionamento é lançado pelo olhar atento do festejado cineasta Hirokasu Kore-eda. O drama foi indicado entre os títulos pré-selecionados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, que também concorreu no Globo de Ouro deste ano na mesma categoria, perdendo para o badalado mexicano Roma (2018), de Alfonso Cuarón. O realizador já havia concorrido, sem êxito, à Palma de Ouro em outras três vezes: Tão Distante (2001), Ninguém Pode Saber (2004), e Pais e Filhos (2013) que conquistou o Prêmio do Júri.

O diretor japonês tem uma vasta filmografia das crônicas ambientadas na classe média baixa de seu país, dando um mergulho no microcosmo familiar para contar histórias verossímeis do dia a dia. É um observador das mudanças inerentes que acontecem com o passar dos anos, expondo as feridas não cicatrizadas para lançar luzes ao universo das distorções dos lares desagregados e em ruínas, ou pela violência doméstica ou pela desestruturação financeira, sempre com uma temática voltada para as perdas, enigmas da vida, a morte por consequência e os desatinos pelas rupturas dos laços que unem os seus respectivos membros familiares. Abordagens estas encontradas no laureado Assunto de Família, que aprofunda o conceito sobre a definição clássica destes personagens sofridos que integram este contundente drama intimista contado com certa suavidade, onde não falta singeleza e uma aparente serenidade para buscar a construção dos vínculos afetivos com muita ternura, carinho e amor, afastando-se do julgamento apressado de normas morais vigentes.

O longa retrata uma paradoxal busca de união fraternal daquelas criaturas excluídas que sobrevivem de migalhas, magoadas e dilaceradas pelas circunstâncias antagônicas, como do inconsequente Osamu (Lily Franky) e o garoto Shota (Jyo Kairi), que mantêm uma convivência de pai e filho. Eles praticam contumazmente pequenos furtos em mercadinhos, lojas e automóveis, tudo sob uma invejável organização por sinais. Já Nobuyo (Sakura Andô) faz o papel da mãe, ela vive maritalmente com Osamu, e também pratica pequenos delitos na empresa em que trabalha, até ser despedida circunstancialmente. Numa noite de frio intenso, depois de uma jornada de trabalhos escusos, pai e filho encontram Yuri (Miyu Sasaki) abandonada na rua, uma menininha com fome e com cara de choro, que é levada para casa. O casal pretende entregá-la às autoridades, mas desistem ao perceberem que é mais uma vítima de violência doméstica pelos pais. Decidem abrigá-la e a adotam como se fosse filha, oportunizando um novo lar, inclusive é treinada para ajudar nos golpes realizados pelo irmão e o pai por afinidades. Abstendo-se de falso moralismo e preconceitos baratos, o filme é conduzido com equidistância, sem cair em armadilhas rasteiras melodramáticas, que somente um notável realizador poderia conduzir com isenção e imparcialidade esta trama locada numa sub-habitação na periferia de Tóquio pertencente à viúva Hatsue (Kirin Kiki, a atriz morreu em setembro de 2018), denominada de vovó. Esta família ainda tem a jovem Aki (Mayu Matsuoka), que deixa de ir à escola para se despir e ganhar algum dinheiro nas cabines de uma loja de sexo.

Kore-eda herdou a sutileza mesclada com sensibilidade dos inspirados cineastas conterrâneos Yusujiro Ozu de Era Uma Vez em Tóquio (1953), Mikio Naruse por Midareru (1964), e o criador do cinema de animação Hayao Miyazaki com temas recorrentes da relação da humanidade com a natureza, como na cena do alegre banho redentor em família no mar. Segue a trajetória do questionamento primoroso dos velhos mestres para mergulhar no universo peculiar das tradições da cultura japonesa. No longa Ninguém Pode Saber (2003), havia a temática da mãe ausente dos filhos e a falta de afeto aos mesmos que literalmente viviam confinados num apartamento; em Pais e Filhos (2013), discutia-se os efeitos futuros dos bebês trocados no berçário com as revelações recebidas, num clima de tensão instalado diante do amor pelo filho de outros pais e a intolerância de um deles; em Nossa Irmã Mais Nova (2014), mostra-se a dolorosa distância de três filhas que não veem o pai há 15 anos, mas ao saberem da morte dele, resolvem ir ao seu enterro, e lá conhecerão a tímida meia-irmã; sem esquecer de Depois da Tempestade (2016), no qual o enredo é traçado com um sabor agridoce para deixar emergir fatos que trarão conflitos sentimentais que envolvem pais que terão de lidar com adversidades repentinas, pois precisam tocar suas vidas.

Assunto de Família é uma narrativa com delicadeza, leveza e senso poético de uma aparente família pobre tradicional em busca de dinheiro dos pequenos crimes efetuados, até que um incidente provocado por um dos personagens que questiona implicitamente os valores éticos, sendo os segredos escondidos entre eles desvendados aos poucos. Neste painel soturno está a ex-prostituta que se juntou ao seu cliente e recolheu uma criança abandonada por um carro de propriedade de alguém de muitas posses; não devolveu a menina que fugiu da violência; além da ocultação de um cadáver enterrado na própria residência. Porém, os vínculos que os unem são mais fortes e revelam um cotidiano de intenso amor, afeto e solidariedade humana para uma reflexão humanista pelo despojamento de falsos tabus. O diretor tem como marca registrada as histórias familiares tradicionais e suas gerações, mas agora dá uma guinada e se detém nas transformações e de uma composição ampla e irrestrita, para retratar estas novas situações diárias de simples coisas que irão ao encontro de relações intrincadas e modificações relevantes. O drama é admirável pelo equilíbrio, embora seja sombrio e a tristeza se mescla com os momentos de felicidade para os personagens daquele núcleo familiar que ruma para a extinção. O desfecho traz cenas comoventes, como a despedida no ônibus e as palavras sussurradas pelo adolescente; ou ainda do registro soberbo da garotinha brincando lúdica e ingenuamente. Um extraordinário filme sobre as sutilezas do amor e dos laços de ternura com suas ligações se esboroando, mas remanescem como a doce culpa do pai e a confissão da mulher para proteger o companheiro. Emociona por ser intenso na complexidade das relações conceituais de uma nova família, e por tudo isto é a obra mais madura e completa que atinge o patamar de melhor filme da carreira de Kore-eda.

Nenhum comentário: