segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Culpa



Cotidiano de Tensão

No apagar das luzes de 2018, eis que surge o surpreendente suspense psicológico Culpa, dirigido pelo sueco Gustav Möller, um cineasta estreante, ousado e com brilho próprio que trabalha na Dinamarca, com indicação para representar este país no Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano. Construiu um painel curioso de tirar o fôlego por meio de relatos de vozes desesperadas de pessoas pedindo socorro por telefone. O filme mostra que também há trotes enviados à central de atendimentos de urgência, e não são raras as burocracias inerentes ao sistema policial de ajuda, o que fica claro pela controversa atuação estática do funcionário público. Ele tem que resolver tudo sem sair do local em que está instalado. Há algumas lacunas preenchidas apenas pela imaginação com decisões que poderão ser precipitadas, por falta de maior informação. São encontradas ainda algumas resistências de colegas pela respectiva área de competência em razão dos limites para se evitar que haja conflitos territoriais que devem ser solucionados em questão de minutos para deslocar uma viatura até o local do fato.

O thriller dá vazão para o imaginário do espectador, tendo em vista os efeitos sensoriais causados pela narrativa com o viés dos diálogos tensos e arrebatadores entre o policial Asger Holm (Jakob Cedergren- de atuação estupenda). Ele está acostumado com as atividades nas ruas de Copenhague, mas devido a um incidente no trabalho, foi afastado por motivos éticos e confinado numa mesa para atendimentos de emergências. O protagonista é o encarregado de receber ligações e transmitir às delegacias responsáveis para as soluções diárias. Entre alguns telefonemas de pouca relevância, acaba sendo surpreendido por um pedido entrecortado por ligações desligadas abruptamente de uma mulher em crise de choro, tentando comunicar o seu sequestro, mas evita que o suposto sequestrador, seu ex-marido, perceba. Os filhos pequenos do casal estão em casa sozinhos e desprotegidos. Mesmo dispondo de poucos dados para encontrá-la, ele começa uma verdadeira odisseia para resgatá-la. Tudo é muito rápido e a situação de risco para descobrir onde ela está é iminente diante da corrida contra o tempo que voa. Há uma grande mobilização de equipes para salvá-la e evitar a tragédia anunciada, deixando a plateia atônita para acompanhar em alta dose de expectativa o desenlace da história, tentando desvendar com o policial o crime em tempo real.

As relações conturbadas são fragmentadas pela ruptura da dor humana, que desencadeiam num episódio de cárcere privado como elemento profundo de uma situação caótica marcada pela violência doméstica, através da sonoridade impactante que despreza as imagens, para soluções reveladoras do sofrimento construídas pelos enigmas da culpa, da responsabilidade, da precipitação e da punição. O agente é um mero instrumento para buscar os transgressores, pelo qual ele também se insere e se pune. Ninguém é inocente, todos têm um passado a ser resgatado, tanto o personagem central como a suposta vítima desesperada e manipuladora pelos seus instintos bestiais oriundos de traumas psicológicos mentais sérios que lhe afetam seus instintos maternais para realizar o pior. O limite estabelecido pelo diretor só é perceptível pelo fone de ouvido entre o atendente e a mulher em crise existencial naquele cenário único e claustrofóbico do interior de uma delegacia, embora repetitivo não é tedioso por ser bem explorado os diversos ângulos, as luzes variando pelo ritmo alucinante dos diálogos marcados pelas repetições e incertezas da linguagem oral, concomitante com os ruídos de carros, pneus, mapas no computador apontando as setas de localização. Em meio a tudo isto, há alguns colegas dele completamente distantes e alheios da catarse exterior que está fervendo nos ouvidos dos espectadores e do protagonista.

Para alguns críticos, o cenário único da delegacia com a capacidade de sugerir imagens sem mostrá-las numa obra minimalista, como no longa de Möller, tem aproximação e alguma similitude com Chaga de Fogo (1951), de William Wyler, bem como de Uma Vida em Suspense (1965), de Sidney Pollak. O cinema é recorrente em personagens solitários na defesa da vida e do amor ao semelhante, como visto em Gigante (2009), do argentino Adrián Biniez, ao retratar no papel principal de Jara, de 36 anos, 125kg e seus 1m93cm, um segurança de supermercado que se apaixona silenciosamente pela faxineira sem graça, através da câmeras de monitoramento. Quase nunca fala, exceto raras vezes com seus colegas de trabalho e o sobrinho, ao jogarem videogame, de instinto quase que beira a irracionalidade conflitua com o ser amoroso num poderoso drama das relações humanas da vulnerabilidade de um homem, num clima tenso que avança para o final, tornando-se iminente um desfecho inusitado. Outra obra que talvez influenciou o realizador, mesmo sem ser clássico, é o ótimo O Guardião (2006), dirigido pelo argentino Rodrigo Moreno, abordando de maneira profunda a solidão e o silêncio de um guarda-costas de um ministro com a tolerância se esgotando dia a dia.

Culpa é uma realização densa, em que há o clímax catártico de raiva e de ódio que irão transformar o epílogo numa quase irracionalidade, já prenunciada em cenas anteriores, como a da busca incessante dos dois perseguidos, explodindo com a imposição das injustiças cometidas pelo sistema de opressão e repressão. Há um duelo de poderes a serem decifrados entre o algoz truculento, a vítima pela sua desfaçatez doentia e o personagem central em meio da burocracia que o leva para uma inquestionável corrupção ativa. Um filme com todos os subsídios psicológicos que levam do tom dramático para o suspense sensitivo e sutil magistral. O policial quer sair para a rua, pegar um carro e libertar a mulher, mas as ordens dos superiores são contrárias para tal atitude. O reflexo da violência implícita se exterioriza quando as evidências da negação de uma simbólica justiça já obsoleta se fazem presentes, refletindo na materialização pelas consequências nefastas que remanescem com tintas de uma violência pontual recrudescente para emergir no microcosmo familiar de uma convalescente sociedade que depende dos modernos meios de comunicação frios e distantes, com resultados devastadores e trágicos para a falta da valorização de diálogos num contexto de um sombrio cotidiano desumano.

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